AS RESIDÊNCIAS DE PINA BAUSCH
THE RESIDENCES OF PINA BAUSCH
Solange Caldeira
UFV
Resumo
O artigo
trata do projeto de residências que Pina Bausch vinha realizando desde 1980. O Tanztheater Wuppertal
viaja para diferentes cidades do mundo por algumas semanas, para captar as
sensações do lugar e criar espetáculos que mostrem as influências e matizes do
país. O objetivo não é "representar" uma cultura específica de um
país, tal qual uma fotografia, um registro fiel, mas sim tentar "ver"
de outra maneira, de outros ângulos, de contaminar-se por algo que esta fora do
habitat quotidiano.
Palavras-chave | Pina Bausch |
Dança-Teatro | Residências | Cidade-personagem | Processo de criação
Abstract
The
article deals with the design of homes that Pina
Bausch had been performing since 1980. The Tanztheater
Wuppertal travel to different cities in the world for a few weeks to capture
the excitement of the place and create shows that show the influences and
nuances of the country. The goal is not "represent" a specific
culture of a country, as a picture, a record fair, but trying to
"see" differently from other angles, to taint something that is
outside the habitat daily.
Keywords
| Pina Bausch | Dance-Theater | Residences | City-personage
| Process of creation
Fazer residência em determinadas cidades
para criar espetáculos que mostrem as influências e matizes de um país é um
projeto que Pina Bausch vem realizando desde 1980, quando a coreógrafa montou Bandoneon, inspirado
na vida cotidiana da Argentina. Em seguida, 1985, ela escolheu Roma e de lá
para cá já visitou, com esse objetivo, cidades diversas, como Hong Kong, Palermo, Viena, Madri, Lisboa, entre outras.
Esse processo é, segundo Pina Bausch, feito à base de sentimentos, não de
método.
''Vou criando um mosaico, encontrando aqui e ali um monte de coisas, detalhes que uso para compor meus trabalhos. Quando preparo um balé, não há nada, só os bailarinos e a vida. Não tenho visões, não é assim que crio. As coisas vão sendo montadas aos poucos” (KATZ,1997:p.13).
O Tanztheater Wuppertal
viaja para diferentes cidades do mundo por algumas semanas, para ali viver,
ver, sentir, ouvir e pensar de uma maneira diferente. O objetivo não é
"representar" uma cultura específica de um país, tal qual uma
fotografia, um registro fiel, mas sim captar as sensações do lugar. Trata-se de
sempre tentar "ver" de outra maneira, de outros ângulos, de
contaminar-se por algo que esta fora do habitat
quotidiano.
A visão que se tem em espetáculos de Bausch é
sempre a cartografia do imaginário, aquele de Pina Bausch e de sua companhia. É
como sair de dentro para depois voltar e olhar do avesso, conforme já apontara Antonin Artaud (1993), sempre a
partir de si, do seu filtro pessoal.
Nos ensaios, ela se mostra perfeccionista
ao extremo e exige dedicação total: ''Peço às vezes que repitam cem vezes algum
movimento que não ficou muito claro pra mim'' (KATZ,1997:p.13).
Regina Advento, brasileira, ex-bailarina
do grupo Corpo, está com Bausch há mais de dez anos e diz que esse momento de
criação é estafante, mas recompensador: ''Ela é muito exigente e pode ser
cansativo trabalhar com ela, mas aprendi muito nesse tempo todo. É muito
gratificante''(KATZ,1997:p.13).
"As nossas peças não são documentários" (KATZ,1997:p.13), afirma Peter Pabst - o cenógrafo a que Bausch se associou depois da morte de Rolf Borzik, seu companheiro e criador da cenografia de todas suas peças.
Aos 65 anos, Pina Bausch permanece fiel aos
seus métodos de criação. Tudo começa do zero, sem notas, sem palavras:
"Primeiro tenho que me perguntar o que sinto, o que procuro, como o vou
contar" (KATZ,1997:p.13). Não é por
isso estranho que Heiner Müller tenha escrito,
referindo-se ao seu trabalho: "O tempo no teatro de Pina Bausch é o do conto. A história intervém como uma perturbação,
como os mosquitos no Verão” (DALY, 1986:p.56).
Para Bausch, a melhor maneira de conhecer um lugar que nos é estranho
é conhecer as pessoas que o vivem. Declara:
“É preciso tempo. O mais fácil é estar com alguém que nos possa levar a ver o que está fora dos circuitos turísticos. O mais importante é deixarmos que essas pessoas nos façam descobrir o que para elas é bonito ou difícil de ver. É através delas que chegamos às coisas verdadeiras, às coisas de todos os dias. Por mais bonito que seja, um monumento construído há muito tempo não me diz muito sobre os que hoje passam por ele ou o visitam" (CANELAS, 2003:p. 37-38).
Para chegar a estas pessoas, geralmente parte de entidades com as
quais estabelece co-produções, ou através de amigos capazes de garantir que
seja possível conhecer as pessoas certas no pouco tempo de que dispõe. Mas, às
vezes, as coisas correm de maneira diferente. Por exemplo, quando Bausch esteve nos Estados Unidos, com uma co-produção em Los Angeles, Only You, em 1996, tudo era muito distante, para ir de um
lugar a outro tinha de andar de carro por muito tempo, e se alguma coisa corria
mal por algum motivo perdia um dia inteiro. Bausch
ficou muito nervosa. Insistentemente rodeada de jornalistas, teve uma idéia:
decidiu que só daria entrevistas a quem a levasse a sítios incríveis, a lugares
que não teria oportunidade de ver de outra forma. E foi assim que conheceu
outros lados da cidade.
Viktor
(1986)
Viktor (1986) é
o resultado da primeira residência de Bausch, feita em Roma. uma montagem das
imagens e dos incidentes que Bausch e seus bailarinos encontraram lá - e da
bagagem pessoal que trouxeram com eles. Assim, pode-se escolher ver Roma em Viktor,
ou compartilhar (ou resistir) da preocupação eterna de Bausch com a maneira de
se tratarem, onde quer estejam, os homens e as mulheres.
A peça ocorre em um palco, cercado em três lados, por enormes montes
de terra, talvez os sete montes de Roma. A quarta parede é sistematicamente
rompida pelos performers, que invadem o espaço da platéia. As
fantasias sexuais agitam-se entre os montes enormes.
São dançarinos, mesmo que haja pouco do que se estabeleceu,
tradicionalmente, como dança, em Viktor. Há umas paródias de balé,
homenagem talvez a Kurt Jooss e Antony Tudor. Porém,
a maioria da ação é um ritual de fantasias sexuais estilizadas, cenas de cabaré
e night clubs e
cortejos funerais, acompanhados pelo jazz
de New Orleans.
Durante todo o tempo, a terra vai caindo das encostas dos montes
abaixo. O coveiro é o sardônico Jan Minarik, que
preside do alto a hecatombe. Para baixo também caem os cadáveres, que vêm junto
com os cortejos. Os cacos de uma civilização anterior são leiloados fora - uma
venda pública de peças Vitorinas, que estão dentro de
um carrinho de bebê. Um homem trabalha diante das tendas, tentando vender
lembranças. Relíquias de antepassados, que nos apontam a fugacidade do passado,
como nossas próprias relíquias informam nosso presente.
O desespero é uma palavra ainda fraca, demasiado fácil para a
desesperança humana que as configurações da coreógrafa alemã Pina Bausch
apresentam em Viktor.
Ao contrário de William Forsythe ou de Merce Cunningham, coreógrafos
americanos, Bausch não inventa o movimento da dança. Seu material é a vida
real, que torce selvagemmente, da prosa visual na poesia. Cada cena neste
espetáculo de três horas e meia é ajustada em uma sepultura maciça, em que um
coveiro, joga intermitentemente a terra para baixo com sua pá.
A sepultura aqui não é lugar respeitado e confidencial, mas um pântano
público onde todos se encontram cinicamente. Logo no início aparece um
paradoxal casamento de dois cadáveres, que tem um quê de dolorida ternura que
se perceberá mais tarde, na cena em que uma mulher bonita, de grandes seios, é
tratada como uma meretriz recebendo ordens de seu cafetão. O homem e a mulher
são os mesmos cadáveres que foram casados no começo.
Em outro momento, uma mulher é forçada docilmente a jorrar a água de
sua boca, como uma fonte clássica, de modo que os homens possam se lavar. Os
cigarros e os frascos da água Evian estão sempre
presentes, ligeiramente maléficos.
Fig. 1 · Viktor Francis Viet e Kyomi Ichida.
Foto: Guy Delahaye
As mulheres de Viktor
são inocentes desajeitadas que recitam seus contos de fadas, ou insensíveis,
manipuladas ocasionalmente ou espancadas pelo excitados homens.
A peça de Bausch permite alguns risos, embora aos poucos a platéia vá
se calando, enquanto a cena leva a uma reflexão do absurdo da natureza humana.
Há também um certo encanto em cenas como da miserável esposa que, vestida com
um macacão florido, põe sapatilhas cor-de-rosa de ponta para sonhar com
Tchaikovsky, e a das debutantes que, rindo sem motivo, se balançam nas argolas
de ginástica. As cenas teatrais acumulam-se, como a fuga da supermodelo e a
atrapalhação de uma empregada. Enquanto que os leilões dos objetos de casa e de
cães de estimação lembram-nos que vamos à sepultura sem nada. Uma coisa que
fica clara seria terrível ser Viktor
a última coisa que alguém visse antes de morrer.
Viktor é um triunfal funeral. Como qualquer peça de Bausch, cada cena é o que
quer que se entenda dela. O público testemunha, como jurados em um julgamento,
espectadores em uma arena de gladiadores. É cíclico e a seqüência final recorda
o começo. A segunda parte é sombreada por uma figura encapuzada: a Morte, com
uma vara no lugar de uma foice. Sabe-se que é um clichê, mas é desconstruído
por Dominique Mercy, bailarino que faz a Morte,
quando demonstra como o traje é montado.
Viktor é uma peça de dança-teatro que derruba todas as
expectativas, especialmente da crueldade e das trevas. É longa, contudo é
divertida, engraçada, e sexy, uma
paródia à sua maneira.
O título da peça, estreada em 1986, é uma alusão a um monumento
fascista, ao vencedor Emmanuel II, que unificou a Itália. O cenário, um
quadrado aberto de paredes vermelhas com escadas encostadas nas paredes,
eleva-se da terra, sugerindo uma escavação, que remete a Roma como um local
arqueológico, reiterado por um performer que aparece com uma pá no alto dos montes de
terra. Durante todo o espetáculo há a queda macia da terra dos montes para o
chão, que vai preenchendo o espaço.
A escavação é uma metáfora sobre a memória, enquanto a terra que cai
para o chão talvez se refira à tentativa de se livrar das memórias, de se
esquecer. Conforme a técnica criativa de Bausch, os dançarinos exploram não
tanto Roma, lugar geográfico, mas sim as suas memórias de Roma.
É com esse material que Bausch trabalha como a cena do homem e da
mulher, com roupas de dormir, que trocam um rádio por dois carneiros vivos. A
escolha de Bausch da música é sugestiva, uma colagem de músicas clássicas e
folclóricas, jazz e músicas alemãs dos anos trinta. A música provoca a memória,
provoca associações com o passado.
Assim, a Roma de Bausch é uma cidade feliniesca
de corrupções e de salões de dança dos anos vinte. Mas, onde quer se esteja, é
sempre um lugar da memória e da fantasia, em que somente se podem esperar
imagens que retornem de temas possíveis, como um guia do sentimento. As cenas
de dominação sexual são repetidas. Em outra cena, uma mulher gira, como se
fosse uma fonte, derramando água de sua boca, de modo que os homens possam
lavar seus pés e mãos. Retorna várias vezes a cena de um leilão, onde dois
paralelepípedos são usados freqüentemente como palanque. Os objetos leiloados
são até mesmo os próprios corpos dos bailarinos, que, de tempo em tempo, giram
em uma linha como um coro da Broadway ou como uma feira de escravos.
Os performers
falam muito, freqüentemente em inglês, e apesar de não dançarem exatamente como
o esperado tradicionalmente, está óbvio em cada gesto que são dançarinos.
Algumas mulheres são altas e bonitas, assemelham-se a vedetes de teatro
musical. A imagem da abertura é de uma mulher em um vestido vermelho, sorrindo
no centro do palco, enquanto ouve uma valsa de Khachaturian. Parece querer
dançar, mas não move nenhum braço, porém, estranhamente, a dança está ali e
está também ausente.
Bausch, mais do que coreografar, faz uma reflexão sobre o que é dança.
Como se fosse um gesto banal, uma mulher enche suas sapatilhas de ponta com
carne crua, calça-as e executa um solo de balé nas pontas para, em seguida, se
afastar com um gesto. É tentador ler esta cena como uma combinação entre os
instrumentos que fazem dançar, no caso sapatilhas de ponta, com truques para
minimizar a dor dos pés - as bailarinas costumam colocar algodão ou ponteiras
de pele, ou cobrir os dedos dos pés com esparadrapo, para atenuar a fricção do
subir e descer das pontas. Sem esses cuidados, há uma grande possibilidade dos
pés ficarem feridos, literalmente em carne viva. O uso da carne crua, por
Bausch, remete à situação da própria carne dos pés das bailarinas, que muitas
vezes, quando retiram a sapatilha de ponta, vêem seus pés ensangüentados. Trata-se,
assim, também de um comentário sobre a parte quase masoquista da arte da dança.
Enquanto isso, o leilão retorna sempre, lembrando a necessidade constante de
encontrar dinheiro.
A segunda parte é dominada por uma figura envolvida num manto preto.
Um velho encarquilhado com uma vara que lembra as de antigos mestres de ballet, que
conduziam as aulas de dança como competições atléticas. O mais interessante é
que esta fantasia é fato, porque quem faz o papel do velho encarquilhado é o
mestre de balé da companhia: Dominique Mercy. A
associação entre idéia da morte, a dança da morte e a morte da dança, torna-se
inevitável. Contudo a dança é também alegria pura, como quando as meninas em
vestidos longos se balançam em cordas de ginástica no ar.
No fim, retornam as mesmas imagens da abertura: a mulher de braços
abertos sorrindo, mas quando as cenas começam a se repetir, nós as vemos em um
contexto diferente, porque agora já fazem parte de nossa memória.
No fim todos estão desmoronados no
chão, esgotados, mas continuando a executar a mesma rotina com seus corpos.
Como se a dança fosse algum tipo de atividade compulsiva, a que Bausch e sua
companhia estão compelidos, mas que também nos compele a prestar atenção quanto
ao seu significado. É audaz, porque nos afasta de todas as expectativas
tradicionais a respeito do que a dança ou o teatro podem ser.
O mundo de Bausch é de um jogo perigoso,
reforçado todo o tempo pela atuação de seus bailarinos-atores. Os palcos quase
sempre têm suas superfícies cobertas por algum material, como turfas, em 19801;
folhas secas, em Blaubart2;
milhares de cravos cor-de-rosa, em Nelken3, ou cercado
por três lados por montes de terra, em Viktor4.
O uso de materiais naturais - paradoxalmente - torna o espaço mais irreal, um
reino assombrado cuja integralidade reflete nosso próprio mundo, onde os
limites e as paixões estão presentes, mas raramente racionalizados.
A companhia é um verdadeiro conjunto.
Todos trabalham o tempo todo, permitindo as mudanças de foco dos jogos e suas
trocas rápidas. É isso que também permite a excursão do público pelos estranhos
caminhos propostos
Às vezes, várias cenas
acontecem simultaneamente, o espaço é preenchido por gritos, por figuras de
camisolas numa selvagem competição, por homens com o dorso nu que tentam
arrancar as cintas de mulheres que resistem ou amáveis europeus que contam
histórias engraçadas e confessionais.
Serenidade e loucura entrelaçam-se numa cacofonia. O amor triunfa e
então é esmagado. A cena é salpicada de gracejos, palhaçadas e morte.
Alguns observam numa espécie de abandono corporal, como se estivessem
esgotados demais para interferir, são figuras que deslizam, ondulam sobre a
cena. Mas existe diferença mesmo
nestes corpos, são frágeis, mas também têm músculos que os arrastam para dinâmicas
e caminhos e inesperados, e sempre enigmáticos.
Uma vez, quando pediram a Bausch para explicar
estes enigmas, disse que não havia mais nada a falar sobre o que o trabalho lhe
significou, pois o público o veria somente através de seus próprios olhos:
"Devem senti-lo eles mesmos, pois eu não falo sobre um só sentido
determinado" (HEWISON, 1999:p.27), concluiu firmemente.
Palermo Palermo
(1989)
Não há como falar de Palermo sem a associação com o domínio da máfia
italiana, ou melhor, com o sentido de corrupção e violência que integram sua
lenda. Porém, Palermo é uma cidade bonita, com seus velhos castelos barrocos,
alguns já desmoronando. Mas em suas ruas, nos bairros mais pobres ou nos ricos,
observa-se uma segregação estranha: os homens olham as mulheres, comentam entre
si. As mulheres falam às mulheres sobre os homens. Mas todo cidadão de Palermo
observa e comenta sobre as pessoas estranhas à cidade.
Em toda parte, na periferia e no campo, vê-se sinais de um
desenvolvimento desenfreado nas construções inacabadas de edifícios. Fundada
pelos fenícios em VIII a.C, a cidade siciliana de Palermo foi invadida pelos
gregos, romanos, godos, sarracenos e normandos. É
sobre essa cidade que Pina Bausch produz Palermo
Palermo, após uma residência de três meses, em 1989.
Há sempre muitas narrativas em uma peça de Pina Bausch. São sobre
experiências humanas e no meio da crueldade e da dor que faz parte dessa
experiência humana e lhe dá um colorido especial, há muito de comédia, ironia,
tortura e prazer. Brilhante, Pina Bausch revela todas estas camadas, desvelando
o essencial de cada momento. Palermo Palermo fala de morte e renascimento, destruição e
recriação, imundície e glamour,
repulsão e desejo.
Quando a cortina se abre,
confronta-se com um grupo de dançarinos, e uma parede cinzenta de tijolos, que
se eleva no meio do palco e que desmorona abruptamente, cobrindo dançarinos e
público com a poeira dos tijolos. De repente, a mesma sensação de demolição, de
corrosão torna-se tão presente dentro do teatro como está nas ruas da cidade. É
possível se ouvir a respiração do público, pode-se sentir o choque.
Palermo Palermo foi elaborada para essa cidade, e aqueles que a
conhecem percebem a desordem, a confusão e os pedaços de tijolos que cobre o
palco como uma assinatura desse lugar. As roupas claras das mulheres, e seu
poder de comando na esfera pessoal, podem também ser sicilianos; mas tudo o
mais é universal, e está conectado e reconhecível através da extraordinária
imaginação de Pina Bausch.
Uma imaginação preenchida pela idéia de que movimento e postura sejam
capazes de expressar tudo. Às vezes os membros do Tanztheater
Wuppertal dançam realmente, e quando o fazem é uma
característica distintiva que sejam os seus braços que façam a maior parte de
movimentos intricados e rápidos, que quase sempre expressam ansiedade, agonia,
complicação, necessidade e às vezes medo.
Pina Bausch trabalha, assim, uma dramaturgia psicológica através de
arranjos mímicos, mas por caminhos que transcendem toda forma de expressão
artística exceto, talvez, a própria arte da performance, em que seus
atores-bailarinos são treinados e
peritos. A estrutura complexa e
longa de Palermo Palermo
apresenta um trabalho verdadeiramente inventivo de sua mente.
Depois que a estrutura desmorona, uma mulher abre caminho através da
poeira e dos tijolos quebrados, dois homens estão a seu lado. "Segure
minha mão! Abrace-me!" Implora a mulher, mas os empurra ferozmente quando
obedecem. Sua desesperada indignidade alcança um clímax quando os homens furiosos
arremessam tomates sobre ela.
Esta é a primeira de muitas interferências com alimentos durante a
peça. Uma mulher aperta um pacote de espaguete debaixo do braço; um terno de
homem é enchido com salame. O paladar italiano sugerido por estes alimentos
associa-se a brincadeiras em outra parte, quando os dançarinos finamente
vestidos, escoram ou se empoleiram
em mesas de café.
A companhia prossegue tecendo seus comentários sobre a cidade com
interações, momentos e relações que seus corpos guardaram dos grupos e indivíduos
que observaram, e o espectador, que há pouco veio da rua, começa a perceber que
o que vê no palco são as atitudes que havia visto nas ruas: o silêncio, a
precaução, a estranha segregação dos sexos - as mulheres, falando entre si
sobre os homens, e os homens, obcecados com as mulheres, mas comunicando-se
somente com outros homens.
Qualquer romance é interrompido. Um homem persegue uma jovem mulher
descalça - será um jogo de amor, ou ela está fugindo com medo? Outro esvazia um
saco cheio de moedas aos pés de uma mulher, como se a avaliasse e encontrasse
seu preço. Uma procissão ou funeral de enlutados joga objetos aleatoriamente,
até cobrir o palco com detritos, não apenas pedaços de edifícios que se
desintegram, mas de vidas passadas. Tudo se transforma numa cena da
deterioração urbana moderna.
Seis homens tocam, repetidamente, a abertura do primeiro concerto de
piano de Tchaikovsky, em pianos velhos, colocados lado a lado em uma linha que
cruza o palco, e param de repente, antes de saírem correndo como loucos. Esta é
uma das cenas engraçadas, outra é do homem que nada em uma piscina improvisada
no palco, em repetidos 'mergulhos'.
Fig. 2 · Palermo Palermo Foto: Maarten Vanden Abelee
Num outro momento, um dançarino é empurrado para o
fundo do palco, sendo forçado a devolver os doces que havia escondido. Um homem
fica tomando banho no fundo, enquanto dois outros, repetidamente, tentam chamar
a atenção de uma mulher, que acaba perseguida, espalhando desordem por toda
parte.
De encontro a um céu noturno com nuvens projetadas, uma mulher de
vestido de noite senta-se em uma mesa de café e lava suas pérolas. Um
saxofonista, iluminado por velas coladas em seu próprio braço, toca acompanhado
por um pianista. Em torno deste quadro surreal, caminha uma mulher com uma
máscara de meia sobre seu rosto e com um revólver na mão.
Esta é visão de Pina Bausch da Sicília, onde acontecem coisas tão
inexplicáveis quanto nos filmes de Buñuel. Palermo
Palermo é uma sucessão de imagens sobre a Sicília
baseadas nas memórias da companhia de Wuppertal. Um
retrato em que emergem mulheres poderosas, complicadas, perfeitamente capazes
de cuidar de si mesmas, mas que fazem pedidos caprichosos aos homens, que não
sabem do que elas são capazes.
Uma mulher pequena, vestida de preto (Beatrice
Libonati) é carregada por um grupo dos homens: uma
viúva da máfia, uma mãe trabalhadora e velha, ou uma estátua carregada através
das ruas em procissão religiosa? Julie Shanahan, a
passivo-agressiva que pede para que a apredejem com tomates, depois de limpa,
torna-se a glamourosa
assassina.
As mulheres mudam sempre de roupa, sapatos, identidades. Os homens
permanecem os mesmos, em seus ternos e capas de chuva. Todos exceto um, que
começa como um campeão de box, vestindo um robe de seda vermelha e termina como uma drag. É um papel excelente, criado por Jan Minarik, cuja presença é marcante.
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Fig. 3 · Palermo Palermo, Jan Minarik. Foto: Detlef Erler
Embora Andrey Berezin também faça um papel parecido, não é tão
perturbador como Minarik, resolutamente masculino
debaixo de toda a indumentária feminina. Todos têm uma possibilidade expressar
sua fantasia de liberdade, como Minarik, que posa
como Estátua da Liberdade
Palermo Palermo é um retrato da companhia de atores-dançarinos,
mas também são caracteres de um drama siciliano, que aterroriza por sua bizarra
realidade.
Em algum momento alguém na platéia começa a rir, diversas vezes, mas
não quebra a tensão. Como rir de Palermo? Há mais: a iconografia religiosa, as
frenéticas e repetitivas danças com um multinacional e eclético elenco,
justaposições surreais, como se três filmes diferentes estivessem acontecendo
no mesmo set de filmagem. Embora
arrebatador Bausch continua, como se isso não fosse suficientemente consistente
para prender a atenção da platéia, alguém poderia se afastar, antes que as três
longas horas de espetáculo terminassem. Hábil em sinalizar seu intento, como
atingir o sentimento da platéia, Bausch é bem sucedida em fazer com que se
percebam várias e assustadoras sensações.
O segundo ato é impressionante. Logo depois que a cortina cor-de-rosa
abre, o elenco avança pela ribalta, carregando sacos plásticos e espalhando
lixo nas primeiras filas, deixando os espectadores dessas filas completamente
petrificados.
O programa do espetáculo apresenta um set surpreendente de fotografias de Palermo e algumas de seus
habitantes: um pedaço de carne sangrenta, suspensa em uma parede, um homem
pegando café debaixo de uma cadeira; ícones religiosos, uma figura alta com uma
máscara da morte, talvez para o Dia dos Mortos; trabalhadores espremidos em
caminhões lotados, como sardinhas em lata; casas de cômodos meio desintegradas,
ao lado de gloriosas estátuas barrocas, que parecem caçoar de crianças que
brincam alegremente do lado de fora dos barracos que ficam na periferia de
Palermo.
A completa desordem da cidade fascina claramente Bausch, mas o que
mais a intriga são os cidadãos de Palermo, cujos rituais diários ela observa em
uma sucessão de imagens e encontros.
Fig.4 · Palermo Palermo, Regina Advento e Francis Viet.
Foto: Detlef Erler
O comportamento doméstico e sexual é extremo. As
mulheres ou estão atarefadas, em trabalhos pesados ou estão sendo reverenciadas
como Madonas, e os homens, quando não são dominados pelas mulheres, vítimas,
pavões enfeitados ou machistas típicos, estão obcecados com comida. Há também
essa presença obsessiva de alimentos na obra, sendo comidos, servidos ou
preparados.
O alimento surge freqüentemente de maneiras estranhas: espaguetes que
parecem observar o que acontece, pendurados em varas, tomates que disparam
sobre os bailarinos, carnes cozidas com um ferro elétrico, maçãs que balançam
sobre algumas cabeças.
Fig.5 · Palermo Palermo. Foto: Ursula Kaufmann
E porque a cidade é Palermo, Bausch não pode apagar
da sua imaginação a religião. Um dos destaques visuais é um estranho homem que
passa arrastado pelo palco, usando uma coroa de espinhos feita de cigarros. Bausch
e seu cenógrafo Peter Babst evocam o impacto de uma
Palermo épica, de beleza decadente em uma chocante obra.
Famosa por suas jornadas para dentro do material que resolve encenar, indo
buscar subsídios em suas próprias memórias e nas fantasias e medos dos seus
dançarinos, Palermo Palermo,
revela ser Bausch uma turista de percepção singular. Bausch veio a Palermo como visitante, e não há nenhuma
dúvida, de que em Palermo existe muita coisa para chocar a sensibilidade alemã
e de qualquer estrangeiro. Porém, se os visitantes vêem apenas o que lhes é
mostrado, esse não é o caso de Bausch. Palermo
Palermo pode ser frustrante, desconcertante, e
mesmo ligeiramente entediante, com seus obsessivos e reiterados padrões de
movimento abstrato, mas, seja o que for, é um atordoante espetáculo.
A peça termina com uma fábula sobre gansos astuciosos que enganaram
uma raposa. E o público parece que 'desperta', como se acordasse de um sono em
que se tenta recordar um sonho, desejando sonhar outra vez. E, certamente não
por acaso, algumas semanas depois da estréia desse espetáculo, um político
democrata cristão, um deputado do parlamento europeu, era assassinado e
sangrava até a morte no chão de pedras de uma das praças de Palermo.
Fig. 6 · Palermo Palermo, Andrey Berezin. Foto: Detlef Erler
Notas
11980 - Ein Stück von Pina Bausch. Direção e
coreografia de Pina Bausch. Estréia em Wuppertal: 18 de maio de 1980.
2 BLAUBART - Beim Anhören einer
Tonbandaufnahme von Béla Bartóks Oper
"Herzogs Blaubarts Burg". Direção e coreografia de Pina Bausch. Estréia em Wuppertal: 8
de janeiro de 1977.
3 NELKEN. Direção e
coreografia de Pina Bausch. Estréia em Wuppertal: 30.12.1982
4 VIKTOR. Direção e
coreografia de Pina Bausch. Estréia em Wuppertal: 14 de maio de 1986.
Referências
ARTAUD, Antonin. O Teatro e seu Duplo. São Paulo: Martins Fontes. 1993.
CANELAS, Lucinda. Por dentro, todos têm a mesma
linguagem. Jornal de Lisboa, Lisboa,
3 de janeiro de 2003. p.37-38.
DALY, Ann. Tanztheater: The Thrill of the Lynch Mob or the Rage of a
Woman? TDR 30, 2 (T110) 1986. p.56
HEWISON,
Robert. Viktor. The Sunday Times. London, 31 de Janeiro de 1999. p.27.
KATZ, Helena. Pina Bausch.
Jornal da Tarde, São Paulo, 25 de
novembro de 1997. Segundo Caderno, p.13.
SOLANGE CALDEIRA Possui
Mestrado e Doutorado em Teatro pela Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro. Foi bailarina do Teatro Municipal do Rio de Janeiro e do Balé da
Cidade de São Paulo. Prêmios: Governador do Estado de São Paulo (Melhor
Bailarina) e APCA/SP (melhor bailarina). Coreógrafa e diretora teatral, foi
Coordenadora do Curso de Dança da UFV, atualmente é professora Adjunta da Universidade
Federal de Viçosa, Chefe do Departamento de Artes e Humanidades, Avaliadora do
MEC/INEP. Tem experiência na área de Artes, com ênfase em Dança e Teatro,
atuando principalmente nos seguintes temas: artes cênicas, arte-educação,
dança-teatro, arte-universidade e processo de criação em dança, teatro e
dança-teatro. Líder do Grupo de Pesquisa CNPQ Estudos Integrados em Dança,
Teatro e Dança-Teatro.
SOLANGE CALDEIRA has a Masters degree and a Ph.D. in Theater at the Federal
University of Rio de Janeiro. Was a dancer for the Theatro
Municipal of Rio de Janeiro and the Ballet of the City of São Paulo. Awards: Governor of the State of São Paulo (Best
Dancer) and APCA / SP (best dancer). Choreographer and theater director, is a
Coordinator of Dance at UFV, and is currently Assistant Professor at the
Federal University of Viçosa, Head of Arts and
Humanities, Evaluator of MEC / INEP. Has experience in the arts, with emphasis
on dance and theater, working primarily in the following areas: performing
arts, art education, dance, theater, art, academia and the creative process in
dance, theater and dance-theater. Leader of the Research Group CNPq Integrated Studies in Dance, Theater and
Dance-Theater.