ECOS DE ESPAÇOS: uma abordagem fenomenológica da dramaturgia de Joaquim Cardozo

ECHOES OF SPACES: a phenomenological approach to the dramaturgy of Joaquim Cardozo

Ana Carolina Paiva

UNIRIO

Resumo

Este artigo aborda os espaços nas peças do autor pernambucano Joaquim Cardozo sob um ponto de vista fenomenológico, que transcende a noção de espaço físico e se propõe a investigar o caráter e o espírito destes espaços. Coube aplicar à investigação o antigo conceito de genius loci, haja visto que a percepção de espaço vai muito além de sua materialidade. Em síntese, entendemos que no grafismo das palavras inscritas no texto dramatúrgico deste autor encontram-se pulsantes e vivos os espaços das praças, das ruas e das feiras.

Palavras-chave | espaço | genius loci | fenomenologia | oralidade | escrita teatral.

Abstract

This article approaches the spaces in the plays of Pernambuco author Joaquim Cardozo under a phenomenological point of view that transcends the notion of physical space and aims to investigate the character and spirit of these spaces. The ancient concept of genius loci was used in the investigation considering that the perception of space goes far beyond its materiality. In summary, we believe that the spaces of squares, streets and fairs are beating and alive in the graphic representation of the words forming the dramaturgic text of this author.

Keywords | space | genius loci | phenomenology | orality | play writing.

 

Na leitura e análise dos diálogos criados pelo autor pernambucano Joaquim Cardozo verifica-se que a ideia de espaço cênico relaciona-se de modo patente com o espaço circular da praça, ambiente próprio do espetáculo popular, onde a palavra, tornada voz, se movimenta pelos mais variados espaços físicos e alegóricos que são descritos nas seis peças do autor.

Neste sentido, somos levados a discutir a ideia de espaço partindo do desenvolvimento do discurso dramatúrgico das peças. Assim, recolhemos os três conceitos norteadores de espaço teatral descritos por Patrice Pavis:

Espaço Cênico: Espaço real do palco onde evoluem os atores, quer eles se restrinjam ao espaço propriamente dito da área cênica, quer evoluam no meio do público.;

Espaço Dramático: Espaço dramatúrgico do qual o texto fala, espaço abstrato e que o leitor ou o espectador deve construir pela imaginação;

Espaço Textual: Espaço considerado em sua materialidade gráfica, fônica ou retórica. (PAVIS, 1999: p. 132-133)

Verificamos que há nas peças uma íntima interligação entre os três conceitos descritos acima: a palavra enunciada aglutina em si o espaço cênico, o espaço dramático e o espaço textual, já que nos próprios diálogos se instalam o ritmo, a fluidez, o improviso e o movimento itinerante encontrados nos espaços públicos das praças, das ruas e das feiras e é através destes espaços, que emergem dos diálogos, que são descritos tanto os acontecimentos do presente quanto aqueles oriundos de outros tempos e de outros lugares que se presentificam no anúncio do texto.

A raiz deste pensamento se traduz na noção de que a palavra dialogada pelos personagens nas seis peças de Cardozo é capaz de trazer à superfície da escrita o ambiente destes espaços públicos. Os diálogos são pontuados pelas mais variadas convenções estabelecidas no espaço social público como forma de espetacularização, ou seja, o texto evoca as cenas realizadas nos espaços públicos das cidades. Dentre tais convenções destacamos: a linguagem de cordel, o coro de Cantadeiras com a intervenção de orquestra musical, a concepção dos personagens com base em tipos característicos que se fizeram conhecer ao longo dos séculos pelo público, a movimentação específica com correrias, bailados, cortejos e a invasão do espaço da recepção.

Entendemos que esta matéria-prima espetacular, formada por significações simbólicas ancestrais e universais, foi apropriada e transformada nas representações públicas - teatrais ou parateatrais - dentro do contexto nacional e sua essência, que além de simbolismos é ainda composta de convenções estéticas, se revela nos textos teatrais do autor brasileiro.

Em verdade, o autor cria camadas em seus diálogos onde é possível para o leitor-espectador sentir a pulsão física dos personagens, seus gestos, sua movimentação pelos espaços, sua ação no mundo, concentrando o foco das cenas no anúncio dos diálogos, fazendo com que as imagens do significante se projetem na leitura. Ainda que silenciosa, a leitura desperta sensações de espacialidade e sonoridade somente encontradas quando a palavra se descola da perspectiva gráfica e adquire o estatuto de voz, assim como na literatura oral, que tem sua origem no suporte da escrita gráfica, contudo já é construída com fortes influências do movimento espacial dos espaços públicos.

A palavra ganha destaque nos textos teatrais de Cardozo na medida em que as ações propostas nas rubricas confluem para o momento do seu anúncio, que se distende em diálogos grandiosos que parecem se perpertuar no momento de sua enunciação. O conteúdo do discurso é debatido através de uma palavra que é construída para o espaço da cena, não para o espaço do texto. Contudo, é no próprio texto que são percebidas camadas extra-literárias, de onde se deduz que no grafismo das palavras construídas no teatro deste autor, encontra-se ainda vivo e pulsante o alvoroço da praça pública.

O processo da escrita teatral de Cardozo apresenta-se como presentificação das reminiscências de alguns espaços públicos das cidades por intermédio da escrita. Num certo sentido, seus textos são tecidos de maneira que os diálogos conduzam a movimentos como se estivessem nos limites e em direção aos espaços públicos. Além das convenções que já foram destacadas, o autor trabalha primordialmente com duas convenções de espaço pertencentes à esfera pública: o movimento circular e o movimento de cortejo ou procissão.

A forte marca de oralidade é seguramente o elemento que favorece a projeção destes espaços públicos para o interior dos textos do autor pernambucano, fomentando o caráter adormecido desses espaços de uso comunitário. O eco das vozes dos personagens criados pelo autor recupera algumas formas de utilização dos espaços públicos citados, revelando essencialmente a relação desses espaços com os modos de espetacularização pública. Em face disto, o pesquisador Ricardo Brügger afirma que “a arte como entidade separada da realidade é uma criação recente e o teatro é de início o das ruas antes de se constituir numa construção específica.” (BRÜGGER, 2008: p.65)

No que toca à prática mental de pensar a transferência de alguns espaços públicos para dentro dos diálogos teatrais de Cardozo nos deparamos com as teorias relativas à fenomenologia do lugar. O fenomenólogo Christian Norberg-Schulz introduz nos seus debates sobre arquitetura a antiga noção romana do genius loci, que se resume no argumento de que cada lugar possui um espírito próprio que guarda relações com o sagrado. O autor destaca que na Roma Antiga acreditava-se que todo o ser independente possuía um espírito guardião - conhecido como genius - que dava vida às pessoas e aos lugares, acompanhando-os do nascimento à morte e determinando ainda seu caráter e essência. Norberg-Schulz acrescenta que os antigos prezavam a prática de entrar em acordo com o genius da localidade onde viviam, pois a sua sobrevivência dependia de uma boa relação com o lugar, no sentido físico e psíquico. (NORBERG-SCHULZ. In: NESBITT, (org), 2006: p. 454).

Isto posto, destacamos ainda nas teorizações de Norberg-Schulz que há uma ideia de “caráter” associada à ideia de “espaço”: “Espaço indica a organização tridimensional dos elementos que formam um lugar. Caráter denota a atmosfera geral que é a propriedade mais abrangente de um lugar” (NORBERG-SCHULZ, 2006: p. 449)

Neste sentido, dentro da noção ampla de espaço encontra-se intrínseca a sua organização tridimensional e a sua atmosfera. A atmosfera de um lugar, que de nenhum modo é marcada pela concretude deste lugar, mas principalmente por sua essência, pode se perpetuar por um processo mnemônico e vir a habitar as mentalidades, de onde se funda o pensamento de que o lugar público não se define apenas como um lugar material e estático, mesmo porque a noção de deslocamento já se encontra na raiz do espírito do lugar. Dentro do espaço urbano este espírito é capaz de se deslocar em determinadas ocasiões, gerando uma magia específica que se apropria de certas áreas da cidade, segundo estudo da pesquisadora Evelyn Furquim Werneck Lima. (LIMA, 2000: p. 21).

Deste modo, o próprio espaço escolhido para abrigar uma construção arquitetônica não é reconhecido apenas como ambiente urbano ou espaço geográfico fixo e despersonalizado, mas como um local habitado por uma entidade que lhe dá personalidade e significação. Desse delineamento inicial, emerge a possibilidade de propor o devassamento da noção de espaço e pensá-la de maneira mais abrangente, num processo de observação atento de suas nuances.

A ideia de pensar a migração dos espaços e das cenas públicas para o ambiente do texto incide mais uma vez sobre as pesquisas de Brügger, que revelam importantes fundamentos metodológicos neste sentido: “A noção da cidade como signo e texto estava presente no discurso da arquitetura e urbanismo dos anos 1970 e 1980. Foi o momento de maior ligação da arquitetura com a semiologia, a retórica e os códigos que margeavam o debate sobre a cidade pós-moderna.” (BRÜGGER, 2008: p.55)

Neste ponto, entendemos que é possível captar a atmosfera de um lugar público, o seu caráter essencial, através da investigação sobre o suporte do texto, cuja escrita específica é capaz de revelar as mais diversas significações e funções sociais dos lugares públicos e suas manifestações espetaculares: folguedos, celebrações, rituais, que revelam sua pulsão física no discurso linguístico.

No que diz respeito ao universo brasileiro, as apresentações urbanas de rua – especificamente teatrais ou apenas possuidoras de um caráter espetacular - são normalmente realizadas em pequenas cidades e meios rurais. Atualmente, pelo menos em datas específicas, estas pequenas cidades funcionam como verdadeiros palcos ao ar livre, cujas apresentações de rua acabam por dar a estes lugares um certo caráter espetacular.

Destacamos dois trechos da peça Marechal, Boi de Carro de Joaquim Cardozo, onde os personagens se encontram na estrada que leva à cidade de Muribeca – estão ambientados portanto num espaço intermediário, num espaço-devir entre a pequena cidade e a cidade grande.

Por meio das palavras dos personagens da peça são evocados os aspectos sócio-culturais específicos deste lugar, que de antiga sesmaria ocupada por usineiros, atualmente possui construções miseráveis sob mangues e é conhecida como o lugar do aterro sanitário de Recife, o lixão de Muribeca, cujo material decomposto é jogado no meio ambiente. Muribeca é uma cidade real, atual distrito do município de Jaboatão dos Guararapes em Pernambuco.

No primeiro trecho, Cardozo discute as transformações passadas pela cidade por causa dos interesses de grupos econômicos que exploraram a pobreza, o misticismo e a ignorância do povo, trazendo uma falsa ideia de progresso. A estética da peça se baseia no cortejo do Bumba-meu-boi.

O som das rodas e o canto se perdem na distância. Três homens iniciam uma conversa

1º Homem

Os macobebas, quem sabe

De onde vieram tantos seres nunca vistos

Não se sabe bem quem eram

De onde surgiram assim

Com seus costumes estranhos

Pois cangaceiros não eram

Nem tampouco eram bandidos

Ou salteadores de estrada

2º Homem

Bem armados é que estavam

De punhal e mosquetão

E levaram Muribeca

A uma grande danação

Suponho que eram demônios

Pelos seus crimes de então:

Pelas misérias que aqui cometeram

3º Homem

Logo quando na cidade se instalaram

Depois de tantas pessoas

Terem ferido ou matado

À nossa matriz rumaram

À nossa grande matriz

E dela a santa tiraram:

Nossa Senhora das Dores

E em seu lugar colocaram

Uma mula sem cabeça

Por isso penso que são

Gente do inferno enviada

Por satanás. (CARDOZO, 1975: pp. 161-162)

No segundo trecho que destacamos, alguns aspectos culturais como costumes, modo de falar, hábitos e comidas típicas da cidade se presentificam na cena das Cantadeiras.

Cantadeiras

Vendedor de mel de engenho

Vem voltando, vem com cinco

Canequinhos pendurados

Nos grandes bules de zinco

Vendendo vem mel de engenho

Que se come com farinha

Que se bebe dissolvido

Nas águas da fontainha

Ao seu lado caminhando

Também vem o farinheiro

Que fugiu de Muribeca

Sem recurso, sem dinheiro

É farinha de mandioca

Da mais branca, da mais limpa

Que misturada com mel

Dá gosto mesmo supimpa

E os dois vêm juntos, bem juntos

E todo o cuidado têm

Pois se não há precaução

Não há mel para ninguém. (CARDOZO, 1975: pp. 178-179)

Para fomentar esta reflexão sobre os modos de espetacularização pública revelados no texto de Cardozo, consideramos as principais noções sobre o espaço da praça, símbolo do caráter público e ambiente ideal de espetáculos e manifestações, que servem de modelo para a escrita dramatúrgica que analisamos.

Segundo observação de Michael Darin: “A praça é uma forma urbana prestigiada na história morfológica das cidades. Cada vez que a narrativa sobre a cidade atinge um clímax, o narrador detém-se sobre o estudo de alguma praça, segundo sua própria preferência.” (DARIN. apud: LIMA, 2000: p. 22).

Deslindando o conceito de Darin, Werneck Lima acrescenta que a praça é uma forma urbana que ultrapassa o âmbito morfológico. Ainda que em seu texto fique claro a importância da praça como uma forma urbana tridimensional e sobre sua condição de objeto arquitetônico, a autora acrescenta que pelo fato dos fenômenos físicos não agirem sozinhos torna-se necessário conceber uma relação constantemente renovada entre a morfologia da praça, a morfologia social e as representações.

Em linhas gerais Werneck Lima trabalha com três categorias de espaço: espaço urbano, espaço arquitetural e espaço social de acordo com alguns argumentos defendidos por Michel de Certeau que “permitem discutir as representações que as práticas imprimem ao espaço sob múltiplas interpretações.”(LIMA, 2000: p. 22).

Aí reside o princípio do fio condutor de nosso exercício mental: o espaço como um lugar praticado e não estritamente um espaço estático concebido sob o solo geográfico. A autora segue identificando que as transformações materiais do espaço público se desenvolvem de acordo com as transformações socioculturais e que tanto nas mutações espontâneas quanto nas ditadas pelo poder, existe sempre um conteúdo simbólico imbricado na formação dos espaços urbanos.

Voltando ao estudo da pesquisadora Werneck Lima, esta faz um levantamento histórico da evolução do espaço de algumas praças públicas no Rio de Janeiro de acordo com a evolução da sociedade e detecta que após a década de 1950 houve uma reviravolta, devida à uma nova cultura capitalista urbana que criou signos de uma vida pública muito individualizada e vazia, o que resultou na morte destes espaços, que acabaram por perder a sua significação. Assim, constata-se que algumas praças e ruas, que eram centros de vivência e integração, transformaram-se em zonas de passagem. (LIMA, 2000: p. 309).

Por outro lado, a autora esclarece ao longo de seu estudo que o espírito do lugar público presente nas praças focalizadas em sua pesquisa não se dissipa completamente diante da ausente efemeridade do evento público que era, digamos, o que dava vida àqueles espaços públicos.

Entendemos, pois, que a essência simbólica da praça e igualmente das ruas e feiras permanece até os dias atuais, mesmo que atualmente estes espaços estejam relegados a lugares de passagem. Deste modo, ainda apresentam resquícios de um genius loci da espetacularidade pública que costumava se revelar por meio dos gestos e das palavras de uma variedade de personagens públicos que passavam por estes lugares, se apresentavam para uma plateia e cumpriam um ritual de espetacularização dentro destes espaços que estava completamente fora das regras e das convenções do espaço teatral oficial. Não obstante, torna-se necessário lembrar que esta relação entre o espaço público e a espetacularização não se extinguiu completamente, a exemplo das diversas celebrações e espetáculos populares existentes em todo o Brasil.

No sentido de pensar a continuidade destes espaços simbólicos na contemporaneidade, mesmo que tenham sido de certa forma descaracterizados com o advento da cultura capitalista urbana, buscou-se refletir sobre até que ponto os valores culturais predominantes podem influenciar a força simbólica das tradições populares. Assim, encontramos em um capítulo de Da Diáspora, do pesquisador dos estudos culturais Stuart Hall uma reflexão teórica que nos convida a aprofundar esta questão. Hall reflete, valendo-se dos conceitos contidos no texto de dois estudiosos contemporâneos: Peter Stallybras e Allon White, sobre como as forças carnavalescas foram aos poucos suprimidas pelas elites burguesas e acabaram ressurgindo de forma deslocada e distorcida como objetos de aversão fóbica e desejo reprimido tanto na literatura quanto na psicopatologia. (HALL, 2003: p.211).

A noção de Stallybras e White de transgressão se funda nas teorias de Bakhtin, que considera a existência do popular como um domínio e uma estética totalmente alternativos, capazes de subverter os modelos de decência e os ideais clássicos e que o sentido de transbordamento da energia libidinal associado ao momento do carnaval o transforma numa metáfora poderosa de transformação social e simbólica. (HALL, 2003: p. 225).

Hall sintetiza que o carnaval de Bakhtin possui a imagem da cosmologia medieval do mundo, que é tanto ordenada em ápice e base, como em alto e baixo ao longo de um caráter vertical que projeta tudo para cima e para fora do movimento do tempo. Revela ainda que este caráter vertical é confrontado pelo impulso para baixo do popular que apresenta um outro tempo e um outro espaço e relativiza tudo aquilo que se representava a si mesmo como absoluto e completo. (HALL, 2003: p. 233).

 

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Fig. 1 e 1 · Xilogravuras de Poty para a edição da peça O Coronel de Macambira de 1963.

Empregamos novamente em nosso estudo as teorias de Bakhtin, desta vez através da intervenção de mais três pensadores, para entender melhor a capacidade de transmutação do espaço simbólico público. A discussão sobre a permanência de alguns espaços públicos, ainda que no plano do simbólico, como espaços de trangressão e resistência histórica dá sustentáculo à nossa teorização sobre a migração destes espaços e todo o seu conteúdo estético e ideológico para os diálogos do autor Joaquim Cardozo, que trabalha conteúdos ideológicos contemporâneos dentro do suporte de uma palavra que integra os espaços simbólicos relacionados precipuamente ao universo cosmológico medieval, cujos reflexos estão nas representações espetaculares públicas no Brasil.

O teatro sempre esteve intimamente ligado aos avanços e recuos da sociedade e a relação entre a espetacularização nos espaços públicos e a sociedade é fundamental e constante. De onde se deduz que o teatro oferece subsídios para alimentar a sociedade e vice-versa. Acrescentamos a isso a discussão do conceito de espaço para Gropius que revela as teorizações sobre espaço, teatro e sociedade da pesquisadora Werneck Lima:

O espaço para Gropius não é nada em si: é uma extensão ilimitada, sem definição. Começa a existir, a delimitar-se, a tomar forma quando vem considerado como dimensão virtual da ação ordinária, projetada, formativa de um grupo social. E por social não se entende a sociedade estratificada, mas poucas ou muitas pessoas que vivem em conjunto uma experiência formativa, seja a que trate dos membros de uma família, dos alunos de uma escola, dos operários de uma fábrica, dos espectadores de um teatro ou dos habitantes de um bairro. (LIMA, 1999: p. 59).

Ao observar o pensamento de Gropius a pesquisadora sugere que o espaço teatral encontra-se substancialmente comprometido com as transformações da sociedade, razão pela qual ele ultrapassa a dimensão material para alcançar uma dimensão ideológica, podendo se refletir na tessitura de um discurso social que é capaz de projetar uma trajetória espacial e temporal.

No intuito de enriquecer este debate, recolhemos algumas observações do filósofo-fenomenólogo Maurice Merleau-Ponty. Seus estudos introduzem a ideia do espaço concebido a partir da experiência humana e suas possibilidades de conhecimentos referentes ao espaço, se propondo a investigar a experiência originária do espaço para aquém da distinção entre forma e conteúdo. O filósofo explica a necessidade de um espaço que não escorregue nas aparências, ou melhor, que se ancore nelas e se faça solidário a elas. Porém, não deve ser dado com as aparências à maneira realista, de modo que assim possa sobreviver à subversão destas aparências. (MERLEAU-PONTY, 2006: p. 334).

O princípio proposto por Merleau-Ponty denota que o espaço não é nem um objeto, nem um ato de ligação do sujeito, pois está suposto em toda a observação e lhe é essencial “e é assim que magicamente ele pode dar à paisagem as suas determinações espaciais, sem nunca aparecer ele mesmo.” (MERLEAU-PONTY, 2006: p. 342-343). Deste modo, o espaço e a percepção indicam no interior do sujeito o fato de seu nascimento e de sua perpétua contribuição corpórea, numa comunicação com o mundo mais velha que o pensamento. (MERLEAU-PONTY, 2006: p. 342).

O filósofo explica que a percepção dá ao sujeito um campo amplo que se estende através de duas dimensões: a dimensão aqui-ali e a dimensão passado-presente-futuro. (MERLEAU-PONTY, 2006: p. 357). Para ilustrar as potencialidades inerentes à percepção de espaço, Merleau-Ponty contrapõe dois exemplos: a noção de espaço para o homem primitivo e a noção de espaço para o homem esquizofrênico, que se revelam como exemplos concretos de espaço virtual criado pelo homem em determinadas condições por ele vividas. Ainda segundo o filósofo os primitivos vivem no mito e não ultrapassam esse espaço existencial, como se houvesse uma consciência no homem primitivo ágil e livre em relação a todos os conteúdos que tem a capacidade de os desdobrar no espaço, “é por isso que para eles os sonhos contam tanto quanto as percepções. [...] Há um espaço mítico em que as direções e as posições são determinadas pela residência de grandes entidades afetivas.” (MERLEAU-PONTY, 2006: p. 383).

Por outro lado, no distúrbio da esquizofrenia há um segundo espaço que se dissocia do mundo objetivo e se transforma num projeto perpétuo do esquizofrênico. “O esquizofrênico não vive mais no mundo comum, mas em um mundo privado, ele não vai mais até o espaço geográfico: ele permanece no espaço da paisagem.” No entendimento do filósofo, este espaço da paisagem é recortado pelo esquizofrênico do mundo comum e se torna consideravelmente empobrecido. (MERLEAU-PONTY, 2006: p. 385-386).

Toda esta reflexão crítica nos permite entender que há um constante intercâmbio entre os espaços físicos e os espaços simbólicos e que os espaços específicos que destacamos, como a praça, as ruas e as feiras, habitam numa matéria estético-espetacular que se perpetua no pensamento atávico, na relação profunda do homem com suas tradições, inscrevendo-se na história contemporânea. Tal proposição leva-nos a confirmar a hipótese de que são reveladas nos textos de Joaquim Cardozo formas espaciais, provenientes de espaços geográficos dos tempos presentes e dos tempos passados, que se substanciam através da expressão verbal refletida nos diálogos criados pelo autor. Dito isto, a pesquisa se vale novamente das reflexões de Bakhtin no que se refere à incorporação, dentro dos mitos, dos recantos geográficos:

Nesse sentido, era muito característico o uso dos mitos locais em solo antigo por Píndaro. Através de um entrelaçamento complexo e hábil dos mitos locais com os mitos universais do helenismo, ele incorporou cada recanto da Grécia, com a manutenção de toda a sua riqueza local, à unidade do mundo grego. Cada nascente, colina, mata ou meandro da faixa litorânea tinha a sua lenda, a sua memória, o seu acontecimento, o seu herói. (BAKHTIN, 1992: p. 257).

Todas estas perspectivas e discussões teóricas sobre a compreensão do espaço para além de sua compleição geográfica ou material nos levam a um entendimento mais abrangente da prática de pensar o renascimento de determinados espaços públicos no espaço da palavra. As afirmações abordadas no decorrer desta análise se vinculam à ideia da existência de um espaço retórico das palavras, capaz de envolver tanto a linguagem falada quanto a linguagem escrita. Este tal espaço retórico das palavras as torna repletas de mobilidade, como um espaço tropológico na acepção de Michel Foucault, “onde podem encontrar o seu local de origem, deslocar-se, voltar-se sobre si mesmas e desenvolver lentamente toda uma curva.” (FOUCAULT, 1999: p. 162)

A observação em torno da linguagem nos revela, partindo do aprofundamento teórico de Foucault, que dentre todos os signos, a linguagem possui a propriedade de se estender em sonoridades sucessivas opondo-se à simultaneidade da representação, mesmo que se apresente como sonoridade latente através da escrita. (FOUCAULT, 1999: p. 162).

Num certo sentido, a linguagem sempre vem depois da representação e acrescenta algo novo através da extensão sonora, algo que lhe é inerente, enriquecendo desta forma o objeto de representação que lhe é apresentado.

Nossa reflexão sobre a possibilidade dos espaços públicos serem evocados pela linguagem - oral ou escrita - encontra nas observações de Foucault uma lógica interna que permite associar as teorias sobre espaço com as teorias sobre a linguagem.

O espaço torna-se objeto de representação da linguagem e se dinamiza na medida em que se faz presente pela linguagem num processo onde a recepção, no caso a recepção de um texto de teatro que pode ser lido ou encenado, é também co-autora neste processo.

No que diz respeito a este aspecto do processo criativo de Cardozo, consideramos válido para as nossas reflexões aplicar aqui o pensamento do autor como engenheiro calculista, já que buscamos elementos que devam ser acrescidos à ideia norteadora de que existe numa escrita teatral a evocação de espaços específicos.

Cardozo entendia a arquitetura como uma arte de criar lugares que favorecessem a existência humana e se opunha definitivamente à ideia da arquitetura apenas como a projeção de espaços funcionais, apesar de ser esta uma das tônicas do Movimento Moderno e de Cardozo ser um Modernista. Em trechos transcritos numa aula aberta dos cursos de 1939 da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo de Pernambuco, faz observações sobre a sua experiência na DAU (Diretoria de Arquitetura e Urbanismo, chefiada pelo arquiteto Luiz Nunes, de 1934 a 1937 no Recife) e revela alguns aspectos de sua ampla visão sobre arquitetura e espaço de onde se podem extrair alguns reflexos desse pensamento teórico no campo da forma arquitetônica para o campo da forma poética, levando sempre em conta que estamos lidando com as relações do espaço com a linguagem.

Referindo-se à relevância da harmonização dos espaços das paisagens com as construções arquitetônicas, a primeira observação que o autor destaca é a seguinte:

Poderei dizer, sem exagero, que eles (os arquitetos da DAU) chegaram a aliar instintivamente a consciência perfeita do meio físico ao espírito tradicional, conseguindo ao mesmo tempo, os melhores efeitos plásticos do concreto armado.[...] E se procurou integrar os edifícios na paisagem, esta magnífica paisagem do nordeste brasileiro com cercas nativas de mulungus e dendezeiros, com mangueira, jaqueiras e cajueiros. (CARDOZO, 1997: p. 13).

Em sua teorização sobre a experiência vivenciada com a equipe da DAU, Cardozo faz referência à importância de aliar o meio físico ao meio tradicional, isto ocorre na sua escrita teatral onde as referências à tradição dos espetáculos públicos presentificam e valorizam os espaços públicos referidos dentro das peças.

O pensamento de Cardozo promove um intercâmbio entre as linguagens artísticas por onde perpassa e entende profundamente as potencialidades de nossas tradições e de como elas se inserem de maneira definitiva na história da humanidade. O autor trabalha com suas significações de modo abrangente, sem impor limites às relações entre as linguagens com que trabalha.

Em outro texto, escrito em 1965, o autor afirma sua crença numa arquitetura capaz de concretizar o espírito e a visão de mundo de uma época, destacando a transcendente condição das formas arquitetônicas e dos espaços onde são construídos. Fica clara a observação do autor de que essas formas são reveladoras da essência e dos feitos humanos e que são capazes de evocar e presentificar o espírito e a ideologia que ficaram perdidos no tempo. Cardozo afirma que:

Na arquitetura estão inscritas as vontades mais puras e duradouras do coração dos homens. A história da cultura e da sociedade repousa em grande parte nas formas arquitetônicas, pois a vontade de um povo se manifesta na forma dos templos de seus deuses, dos palácios de seus reis. Quando uma civilização desaparece, no imenso decorrer dos tempos, somente nas pedras dos edifícios desmantelados é que se vão encontrar os marcos dessas culturas e, nas diferenciações dessas pedras, na maneira de erguê-las ou agrupá-las, é que estão as diferenças das raças, dos povos e das culturas. É por isso que podemos dizer que a primeira história, a primeira literatura, foram escritas na pedra, nos muros e nas colunas, nas arquitraves e nas abóbadas. Desde a Antiguidade os muros das construções foram os primeiros órgãos de informação, resumos da vida social dos povos, o primeiro papel onde se inscreveram as páginas da história, o papel onde ainda se inscrevem as mensagens para o futuro. (CARDOZO, 1997: p. 16).

Deduzimos que o pensamento do autor como calculista acrescente observações importantes a este aspecto específico presente em sua dramaturgia, pois não há como pensar a concepção de espaços públicos virtuais que se dinamizam na linguagem articulada sem considerar as suas reflexões sobre a arte da arquitetura, onde o autor preconiza dentro desta arte os valores da tradição e a atmosfera presente nas construções arquitetônicas, que está longe de uma concepção estritamente técnica e se ergue em comunhão com o espírito presente na paisagem e com as ideologias, mitologias e hábitos que são inscritos pela humanidade nestas construções.

Cardozo apropiou-se das possibilidades formais encontradas nas manifestações espetaculares populares e recriou em suas peças um modo de diálogo que na esfera popular adquiriu a capacidade de se revelar para o público fora do suporte gráfico ou da fixidez da escrita, tornando-se monumento através de um outro suporte: o ator. A palavra em seu teatro é, antes de mais, voz espetacular, reflexo de uma voz praticamente independente da escrita que fora monumentalizada através do corpo e da voz dos performers das ruas e das praças na Idade Média e no Renascimento e que apresenta reflexos nos dias atuais.

Tomemos como exemplo a figura do curandeiro, personagem que povoa os tempos desde, pelo menos, a Idade Média. Em lugares específicos lá estava este performer vendedor de drogas medicinais, o nosso Doutor do bumba, fazendo uso de uma linguagem espetacular para vender suas ervas e derivados. Sua ação nas três peças de Cardozo, O Coronel de Macambira, Marechal, Boi-de-Carro e De uma Noite de Festa, surge de sua própria apresentação e falação, na medida em que o público já subentende quais desdobramentos de ação e de deslocamento espacial a sua presença na cena irá gerar. Por conhecer intimamente este personagem não é do interesse dos espectadores o seu percurso antes de sua entrada em cena e depois de sua saída de cena, importando efetivamente o poder de ação revelado no momento do anúncio de suas palavras, quando o personagem faz uso de todos os recursos corporais e vocais possíveis para descrever a sua “propaganda.” Aqui conclui-se que se instaura uma instância metateatral onde pode-se conviver paralelamente neste ambiente ambíguo que é o espaço público momentos de teatro e de realidade dentro da representação teatral.

Fig. 3 · O Coronel de Macambira. Direção: Leandro Mariz. Foto de Tiago Higa (2009)

Ocupar-nos-emos de novo trecho de Marechal, Boi-de-Carro onde o curandeiro ou ervanário é identificado como Rezador e numa fala cheia de ironia distente o poder gerado por suas palavras que adquirem os mesmos contornos formais identificados no curandeiro público. Este personagem não precisa de apresentação para a audiência e sua fala já encontra-se atrelada a signos de ação e de espacialidade já estabelecidos tradicionalmente. Neste sentido, é possível identificar a partir da fala os outros signos da cena já que esta sintetiza o circuito de ação desenvolvido por este personagem.

Rezador:

Meu capitão, é costume

Em momentos como este

Se procurar um doutor

Em medicina legal;

Ou um grande operador

Que a mesa de operação

Põe no centro da platéia

De algum teatro de arena

Como se fosse um toureiro

Mas não sei se isso convém! (CARDOZO, 1975: pp. 254- 255)

Aliando a ação e a multiplicidade de assuntos dos espetáculos populares com o pragmatismo e a funcionalidade da poesia oral e associando estas convenções próprias da tradição do uso do espaço público aos seus próprios experimentos dramatúrgicos e à temática escolhida, o autor coloca o foco da atenção de suas peças nas ideias geradas nos diálogos, valorizando os desdobramentos formais que são revelados dentro do principal veículo destas ideias: a palavra. Tais desdobramentos se refletem no modo de composição de seus diálogos que são independentes do contexto da fábula contada, ainda que estejam inseridos nela, pois revelam um modo de pensar e agir contextualizado num tempo e num espaço que se perpetuam na tradição, onde tanto as apresentações teatrais quanto as manifestações espetaculares - das parateatrais até as teatrais-, estavam intimamente relacionadas com mitos e arquétipos do homem público.

As mitologias presentes nas manifestações da esfera pública são incorporadas às peças de Cardozo que acaba por forjar diálogos com grande variedade formal: o uso do verso, da repetição, a aplicação de palavras sem sentido, ditas como impropério, como escárnio, enfim, a construção dialógica prositadamente artificial estimula na palavra uma dimensão que revela ao mesmo tempo o pensamento e o movimento das ruas e das praças.

O efeito gerado na união dos aspectos ideológicos debatidos nas falas dos atores de rua com os elementos espetaculares das ruas no âmbito do universo popular pode ser percebido através de alguns espetáculos populares que viajaram no tempo e no espaço. Por exemplo, o Bumba-meu-boi apresenta muitos personagens que são típicos representantes do espaço público, com características e funções atinentes a este espaço, onde a noção de espetacularidade vem quase sempre contígua à noção de utilidade, propaganda, debate ou enfrentamentos públicos. Inserida neste universo, a palavra empregada nos diálogos de Joaquim Cardozo torna-se concomitantemente o elemento gerador da cena e da ação social.


Referências

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__________________O Coronel de Macambira (Bumba-meu-boi). Rio de Janeiro: Editora Tecnoprint, 1963.

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___________________O Capataz de Salema. Antônio Conselheiro. Marechal, Boi de Carro. Rio de Janeiro: Agir Editora, 1975.

ANA CAROLINA PAIVA é atriz, doutora em Artes Cênicas pela UNIRIO (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro) e professora de prática, história e teoria de teatro.

ANA CAROLINA PAIVA is a play-actress with a PHD degree in Dramatic Arts at UNIRIO (Federal University of Rio de Janeiro) and is a teacher of practice, history and theory of theatre.