A CIDADE E O TEATRO DE REVISTA:

o edifício da Estrada de Ferro Oeste de Minas de São João del-Rei

THE CITY AND THE “TEATRO DE REVISTA”:

The building of Estrada de Ferro Oeste de Minas of São João del-Rei

Cláudio Guilarduci

UEMG

Resumo

A peça de teatro de revista São João ou A mudança da capital (1893), de Modesto de Paiva, apresenta a disputa política entre as cidades mineiras que tinham interesse em sediar a capital do Estado. Seu enredo constrói uma imagem moderna para a cidade de São João del-Rei evidenciando seus atributos modernos e naturais. O propósito desse texto é analisar as referências feitas na peça teatral ao edifício da Estrada de Ferro Oeste de Minas (EFOM), símbolo do espírito moderno da cidade.

Palavras-Chave | Teatro de Revista | São João del-Rei | Espaço Cênico | Espaço Urbano | Edifício da Estrada de Ferro Oeste de Minas (EFOM).

Abstract

The play São João or A mudança da capital (1893), of Modesto de Paiva, introduces a political fight between the Minas’s cities that had the interest to be the State capital. Its plot forms a modern image of São João del-Rei city making evident its natural and modern attributes. This text’s purpose is analyse the references made on the theatrical play to the building of Estrada de Ferro Oeste de Minas (EFOM), symbol of the city’s modern spirit.

Keywords Teatro de Revista | São João del-Rei | Scenic Space | Urban Space | Building of Estrada de Ferro Oeste de Minas (EFOM)

 

No espaço cênico construído pelo teatro de revista pode-se encontrar a realidade transposta para a cena em meio à ficcionalidade que esse próprio espaço possibilita, oportunizando além de lazer e diversão uma reflexão sobre a vida daqueles que participam do espetáculo, inclusive como espectadores. Como uma lente de aumento sobre determinados fatos da cotidianidade a cidade se revê projetada na cena.

Vale ressaltar que qualquer olhar imediato perceberá a inequívoca relação existente entre o espaço cênico criado nas peças de teatro de revista e o espaço urbano, visto que um dos principais personagens desse gênero teatral é a cidade revisitada. Além de um dos personagens ser a própria cidade, os enredos revisteiros se aproximam tanto das crônicas jornalísticas quanto do trabalho dos historiadores, por registrarem uma infinidade de recortes cotidianos do “real”.

No entanto, essa imediatidade do representado nos palcos não pode ser pensada a partir de uma simples reciprocidade entre os fatos importantes ocorridos na cidade e as cenas fragmentadas do teatro de revista. O possível mapeamento do espaço urbano através desse gênero teatral pode indicar apenas uma delimitação do olhar daqueles que produziram as crônicas revisteiras porque o ato de mapear é de responsabilidade dos urbanistas que constroem sua visão da cidade pelo alto, pelo mapa, em contraposição, como quer Certeau (2005: p. 171), aos praticantes ordinários da cidade que a experimentam por dentro, “embaixo, trazendo um determinado conhecimento espacial adquirido pelo próprio deslocamento urbano”.

Além disso, num entendimento a partir da história linear pode parecer óbvio que no teatro de revista, gênero urbano, consolidado junto à modernidade e que tem como principal personagem a cidade transformada, que suas peças tivessem como intuito maior apresentar apenas as mudanças ocorridas no espaço urbano a partir das idéias de modernidade trazidas, principalmente, da França. No caso específico de São João del-Rei oriundas da Capital Federal.

O texto revisteiro (texto e encenação), assim como o texto urbano, agrega tanto os múltiplos olhares de uma platéia (dos consumidores) quanto a visão ideal ou real de um escritor (“leitor especial da cidade”) que é capaz de retratar o espaço urbano a partir de um texto encenado. A cidade, assim como as cenas revisteiras, espelha, a partir de um entrelugar, os discursos homogêneos que a própria coletividade construiu nas alteridades cotidianas.

Ao afirmar que o espaço urbano pode ser lido como um texto, o que, na realidade, se faz é uma analogia entre o “fenômeno da formação, da agregação, da estruturação do espaço urbano e o da formação, agregação e estruturação da linguagem” (Argan, 1998: p.237), pois tanto na configuração urbana quanto na da linguagem existe uma dinâmica estabelecida pela relação entre o signo significante e a coisa significada. Ainda de acordo com Giulio Carlo Argan, a partir do estruturalismo saussuriano, nesse sistema de relações, as palavras têm um caráter linear (sintagma), ou seja, são encadeadas sucessivamente impossibilitando a pronúncia de mais de um elemento ao mesmo tempo, e seu valor está vinculado aos termos que a precedem ou lhe sucedem. Além disso, essas mesmas palavras estão vinculadas à memória (paradigma), por isso podem ser associadas, formando um discurso coerente e capaz de ser entendido por um determinado grupo social (cidade).

A partir dessa dupla visão pode-se entender que tanto no campo urbanístico quanto nos fatos linguísticos sociais existem relações e diferenças entre os termos articulados, mas que são, ao mesmo tempo, indispensáveis para a língua e para o espaço urbano, pois sua existência não é devida apenas às relações associativas nem, simplesmente, pela lógica funcionalista de cada termo.

Saussure (2004, p. 143), para exemplificar sua teoria, faz uma comparação entre uma unidade linguística e uma coluna de um edifício. A coluna que sustenta uma viga mestra possibilita uma organização de duas unidades que ocupam um espaço, ou seja, existe uma relação sintagmática entre a coluna e a viga. Ao mesmo tempo, essa coluna traz algum formato arquitetural em detrimento a outras possibilidades de construção, e ao suscitar comparações, o referido autor afirma que existe uma relação associativa.

Como os textos aqui analisados são efêmeros, fragmentados, polissêmicos e híbridos é necessário ampliar a visão a partir do exemplo saussuriano – que está vinculado aos aspectos materiais do texto – e perceber que as práticas cotidianas são

criadoras de usos ou de representações que não são absolutamente redutíveis às vontades dos produtores e de normas. Portanto, o ato de leitura não pode de maneira nenhuma ser anulado no próprio texto, nem os comportamentos vividos nas interdições e nos preceitos que pretendem regulamentos (Chartier, 2004: p. 13-4).

Nessa perspectiva é possível apontar que os textos (teatral e da cidade) não podem ser interpretados somente pelos enunciados normativos porque isso conduziria a um entendimento da escritura como sendo exterior e anterior a qualquer emprego particular, em suma: os textos teriam sempre um sentido invariável e universal (Idem: p. 47).

A unidade lingüística dentro de um discurso supõe uma estratégia enunciativa para que o texto possa produzir uma determinada construção de significado, localizável no espaço e no tempo. Portanto, existe uma relação prática entre aquele que escreve, os seus possíveis leitores e aqueles que irão realmente dar sentido ao texto. A produção e a construção de sentido devem ser entendidas “como o resultado de ‘negociações’ com o mundo social” (Chartier, 2002: p.10), por isso as obras podem ser consideradas produções coletivas. Certeau (op. cit.: p. 264) afirma que “ler é peregrinar por um sistema imposto (o do texto, análogo à ordem construída de uma cidade ou de um supermercado)”, e que qualquer ato de leitura altera o objeto lido.

É a partir dessa multiplicidade de formas de representação da cidade que o teatro de revista produz que se pretende analisar a peça teatral São João ou A mudança da capital1 (1893) de Modesto de Paiva2, primeira revista escrita e encenada na cidade de São João del-Rei. Seu enredo apresenta a luta política entre as cidades interessadas em sediar a nova capital de Minas Gerais – Juiz de Fora, São João del-Rei, Barbacena, Vale do Paraúna, Belo Horizonte, Ouro Preto e Vargem do Marçal – além de enfatizar exaustivamente que São João del-Rei se diferenciava das concorrentes tanto pelos seus atributos naturais e modernos quanto pelas inúmeras melhorias urbanas que a cidade vivia naquele período. Da referida peça, após uma contextualização do percurso teatral revisteiro e da formação do espaço urbano da cidade, a analise privilegiará o edifício da Estrada de Ferro Oeste de Minas por simbolizar o espírito moderno são-joanense.

O Espaço urbano de São João del-Rei nas peças de teatro de revista

Nas peças teatrais – A mudança da Capital (1893), de Modesto de Paiva; Terra ideal (1915), de Tancredo Braga; O Gramophone (1916), de Alberto Gomes; Número um (1917), de Durval Lacerda e O meu boi fugiu (1918), de Dr. Ribeiro da Silva e Oscar Gambôaescritas e encenadas em São João del-Rei, o espaço urbano representado fica restrito às ruas centrais com seu comércio e edifícios barrocos e modernos. São citadas de forma recorrente as construções da Estrada de Ferro Oeste de Minas (EFOM), principalmente o edifício dos passageiros e o seu hotel, a Companhia Industrial São Joanense, o Pavilhão de Exposições do bairro Matosinhos, o Teatro Municipal e algumas praças. O bairro com o maior número de citações é o de Matosinhos com sua festa religiosa. O bairro Tijuco é mencionado para fazer referência às pessoas com relevância cultural, principalmente, no campo da música. Das construções antigas e, por conseguinte, barrocas, são citadas com maior freqüência as pontes da Cadeia (1797) e do Rosário (1800).

A delimitação espacial da cidade de São João del-Rei definida nas peças ratifica a tentativa de demonstração de seus aspectos modernos, no entanto, é importante frisar que devido às suas características barrocas existe uma superposição entre o moderno e o barroco na construção desse espaço. A cidade de São João del-Rei é cortada por um rio – Córrego do Lenheiro – esse aspecto exigiu a construção de vias de acesso a cada uma das margens, como por exemplo, as pontes de ferro para pedestres construídas no final do século XIX. No entanto, as pontes mencionadas nominalmente nas peças foram construídas no final do século XVIII, ou seja, são do período barroco. Talvez essa referência se deva ao fato de que o centro da cidade e os edifícios da administração pública estejam próximos a estas duas pontes.

No final do século XIX e início do século XX a ocupação urbana da cidade segue a direção do Córrego do Lenheiro e vai tomar as áreas próximas da EFOM. As construções novas dessa região não são citadas nas peças. Outros aspectos barrocos são citados apenas por alusão. Um deles é representado, novamente, pelo bairro Tijuco, pois é lá o berço da música sacra barroca, no entanto, essa produção musical não merece destaque nas representações teatrais apesar de os músicos que participam das peças serem integrantes das orquestras da cidade e, possivelmente, se apresentavam durante as festas religiosas das igrejas mais importantes da cidade.

É com a inauguração da EFOM que as mudanças arquiteturais serão mais acentuadas. As alterações trouxeram a coexistência de estilos variados, mas a predominância era o da arquitetura eclética, destacando o art-déco e o romantismo. São João del-Rei, com o seu poderio econômico, se destaca entre as cidades coloniais na incorporação de elementos de uma arquitetura diferente da colonial. O ecletismo, num primeiro momento, apenas misturou elementos tradicionais com outros advindos do progresso. As construções, basicamente, permaneceram com a mesma estrutura, alterando apenas a fachada com a introdução de materiais nos adornos, ou seja, a primeira fase apenas dá uma roupagem nova às estruturas tradicionais. Com o amadurecimento do estilo e com a possibilidade de importação de materiais as construções passaram a utilizar o tijolo, o ferro como elemento estrutural e de forma decorativa, os materiais industrializados, além das alterações quanto ao uso do terreno: recuo da fachada, construção de porão, distanciamento em relação aos lotes laterais, varanda lateral com adornos de madeira e jardins. Esse uso do espaço urbano trouxe reflexos nas vias públicas que ficaram mais largas e com o uso de arborização (Lima, 1995: p.58-9).

No final do século XIX e início do XX, é que esse núcleo urbano sofrerá maiores interferências na arquitetura e no traçado retilíneo das ruas ao longo do Córrego do Lenheiro seguindo a direção de seu curso. O Complexo Ferroviário da EFOM é o maior representante da nova concepção urbanística. Pode-se inclusive afirmar que esse edifício além de representar alegoricamente o discurso moderno da época, por estar vinculado à idéia de experimentação do progresso, sua interferência não pode ser mensurada apenas no sentido urbanístico, mas também em relação ao meio de transporte dentro das Minas Gerais, reafirmando o importante papel de entreposto de São João del-Rei.

O Complexo Ferroviário da Estrada de Ferro Oeste de Minas (EFOM)

A estação ferroviária começou a ser organizada no ano de 1878, mas somente no dia 28 de agosto de 1881 é que foi inaugurado o trecho de Sítio (atual cidade de Antônio Carlos) a São João del-Rei (Gaio Sobrinho, 1997: p. 37; Campos, 2007: p.150). A inauguração contou com a visita de D. Pedro II e sua comitiva, constituída pelo ministro da Agricultura, Manuel Buarque de Macedo; da Marinha, José Rodrigues Lima Duarte; além dos engenheiros Rademaker, Ewbank da Câmara e Niemeyer3.

Devido às oscilações cambiais que impossibilitaram os pagamentos dos empréstimos realizados para manutenção de suas obras e para a abertura de novos entroncamentos foi decretada, em abril de 1899, a liquidação da Estrada de Ferro, passando todo o seu acervo para a guarda do Governo Federal e do Brasilianische Bank für Deutschland. Em 1903, foi arrematada pelo montante de 15.600:000$000 pelo Governo Federal. A sede da ferrovia ficou em São João del-Rei até 1920, ano que sua administração foi transferida para a cidade de Belo Horizonte, ficando somente as oficinas e a seção de depósito, com mais ou menos cem operários (Viegas, 1953: p. 99).

A EFOM, idealizada e construída pela elite política e financeira local como medida de modernização da cidade, tinha uma área total de, aproximadamente, trinta e cinco mil metros quadrados e objetivava estimular o surgimento de outras atividades, como as grandes indústrias, o aumento da mão-de-obra imigrante e a aceleração da dinâmica comercial com a melhoria do escoamento das mercadorias. A ferrovia propiciou a manutenção do papel de entreposto que São João del-Rei ocupava desde o século XVIII, o desenvolvimento do bairro de Matosinhos que, inclusive, possuía uma estação suburbana denominada Chagas Dória e o das Fábricas, além de acelerar a ocupação das áreas que ladeavam o complexo ferroviário. Em Matosinhos a linha férrea foi inaugurada em 1881 e “passava pela atual rua Amaral Gurgel, que inicia-se no Matadouro Municipal e vai o Grupo Escolar Mateus Salomé” (Henriques, 2003: p.105).

 

 

Fig. 1 · Montagem de Fotos da EFOM

 

 

1 – Estação de São João del-Rei

  2 – Carro Especial

  3 – Estação Aureliano Mourão

              

             4 – Estação de Oliveira

             5 – Tipos de Locomotivas

 6 – Locomotivas na Rotunda     S.J.D.R.

 

Fonte: LLOYD, Reginald et. al, 1913, p. 259. Acervo do Núcleo Bibliográfico de Barbacena. Arquivo Público Municipal de Barbacena.

No ano de 1885, a Estrada de Ferro teve a concessão do trecho que partia de São João del-Rei até a cidade de Oliveira, com um ramal em Ribeirão Vermelho. Esse serviço iniciou suas atividades em 5 de julho de 1886 (Lloyd et. al, 1913: p. 256), e em 25 de maio de 1908 foi inaugurado o ramal que fazia o destino Matosinhos-Cidade, “com cinco horários de viagem durante a semana e oito aos domingos, feriados e dias santos” (Henriques, ibidem). Com esse ramal a população do bairro passou a utilizar o trem como meio de transporte para chegar ao centro da cidade e poder se beneficiar do comércio local. No ano de 1910, outro ramal foi incorporado a essa linha ligando Matosinhos às Águas Santas4.

Com a construção da ferrovia a cidade de São João del-Rei aliava-se às idéias da era industrial e fomentava outros empreendimentos como a construção do teatro, hotéis, o próprio Hotel da EFOM, e de outros estabelecimentos industriais e comerciais, além de melhorias nos serviços urbanos: a inauguração de uma estação de telégrafo (1896), a empresa de canalização de água (1893), a iluminação elétrica (1900), etc. O complexo ferroviário também motivou construções residenciais e abertura de novas vias públicas, geralmente de grandes dimensões se comparadas às ruas do período colonial.

O edifício destinado aos passageiros foi inicialmente construído com apenas um bloco central, somente entre os anos de 1918 e 1924 é que foram elaboradas alterações arquiteturais com o acréscimo de dois blocos laterais, além da reforma da sua fachada e do prédio do armazém. Sua ornamentação final possui elementos referentes à arquitetura clássica com vergas em arcos batido nas janelas do primeiro pavimento, com ornatos em relevo nas partes superior e inferior. As portas com vergas retas também são ornamentadas em relevo de argamassa em sua parte superior. Em arco pleno é possível observar o pavimento abaixo do relógio que traz também uma ornamentação que tenta recuperar a arquitetura clássica com os seus frisos e suas cornijas (Moreira, 2007: p. 93).

[As vergas], no período colonial mineiro, aparecem inicialmente em forma reta ou de nível, tendo evoluído depois, com a sua adoção no Palácio dos Governadores, em Ouro Preto, para a forma alterada ou em canga-de-boi. Mais tarde, os arcos das vergas se tornam francamente curvos (Ávila, 1980: p. 95).

Outra importante edificação do complexo ferroviário é a rotunda que foi construída, por volta de 1895, com a finalidade de inverter o sentido da locomotiva além de funcionar como depósito e servir de espaço para pequenos reparos. Esse depósito anelar foi construído com colunas de ferro que dão sustentação ao telhado de madeira com telhas francesas. Possui um girador central com 6,5 metros de diâmetro com 24 linhas para depósito, sendo que duas linhas de lados opostos permitem a entrada e saída das locomotivas5. Para o trabalho de manutenção, utilizam-se os dois fossos de inspeção existentes logo abaixo de duas das linhas. Na parte externa da rotunda observa-se os mesmos elementos decorativos encontrados no edifício de passageiros. Os ornamentos de argamassa formam entre os espaços de duas em duas janelas pilastras em relevo e, nas janelas, têm-se vergas em arco pleno. Já os edifícios construídos para depósitos de materiais a solução estética foi diferenciada, pois neles os tijolos são aparentes, indicando as características das funções desempenhadas naqueles espaços (Moreira, op. cit.: p. 95-8).

A EFOM na peça A Mudança da Capital

Como a estreia da peça A mudança da capital ocorreu no dia 26 de agosto de 1893, possivelmente seu enredo tenha sido construído também a partir das informações contidas no Relatório elaborado pela Comissão de Estudos que analisou a viabilidade das diferentes localidades com interesse em sediar a capital. A Comissão, presidida pelo engenheiro Aarão Reis que mantinha uma predileção por São João del-Rei, apresentou o relatório no dia 16 de junho de 1893. A decisão do lugar da nova capital do estado somente ocorreu em uma sessão da Assembleia Legislativa no dia 13 de dezembro de 1893, na cidade de Barbacena. Tanto é assim, que o personagem Gazeta6, representado um dos jornais da cidade, ao elogiar São João del-Rei cita o parecer da Comissão de Avaliação.

GAZETA (exaltada) – Então?! (depois de cumprimentar) Era de meu indeclinável dever apresentar-me hoje aqui para deregir a V. Exa. as minhas mais sinceras congratulações pela sábia quão feliz idéia do Congresso de reunir-se na próxima sessão fora de O. Preto afim de poder deliberar sem constrangimento sobre a escolha definitiva do local para a construcção da nova cidade; o que desde já garanto a V.Exa. o triunpho da causa do Marçal em vista do sábio e luminoso parecer da commissão que teve por chefe o digno e illustrado engenheiro Dr. Aarão dos Reis (A Mudança da Capital, p. 59v-60).

De acordo com a rubrica do 3° Quadro as cidades Bom Sucesso, Oliveira, Tiradentes, Campanha, Turvo, Lavras, Baependy, Rio de Janeiro e Ouro Preto encontram a cidade de São João del-Rei numa sala “decentemente mobiliada” e a parabenizam cantando a feliz escolha do novo local para sediar a capital do Estado.

Felicitar-te nós aqui viemos

Nossa gentil irmã querida

Pela genial e grande idéia

Tão festejada e applaudida!

Que te torna digna de nota

Por successo tão sem igual

E te fará tão deslumbrante

Qual Européa Capital!

Oh que alegria, Oh que prazer.

O tal projecto é um sucesso.

Que capital nós vamos ter

Graças ao nosso bom Congresso!

De orgulho estamos possuídos

Juramos nós de coração!

Com que prazer dizemos todos

Viva o Marçal! Viva São João (A Mudança da Capital, p. 48-48v).

O caminhar pela cidade de São João del-Rei, com o intuito de demonstrar seus atributos modernos, começa no 2° Quadro com a chegada à cidade de um congressista mineiro que fez a opção de descansar dos trabalhos políticos em São João durante o inverno. A rubrica descreve o cenário como sendo o Largo da Estação com o hotel da Oeste de Minas, tendo ao fundo o muro da EFOM junto à rua do Antônio Rocha7. Portanto, é possível concluir que a peça A mudança da capital apresenta a cidade de São João del-Rei utilizando como ícone do espaço urbano a fachada da Estrada de Ferro, reiterando, dessa forma, que sua arquitetura representava uma nova concepção urbanística alinhada com os desejos de modernidade, progresso e civilização. Velocidade, tempo, espaço e máquina traziam não só significações econômicas, mas ligações com o ideário de uma cidade que se aproximava do Rio de Janeiro ao possibilitar maior circulação de pessoas, de mercadorias, de moda e de revistas, jornais, livros, notícias etc.

Na cena 10 desse mesmo quadro, fragmento da peça de maior interesse para a presente análise, o personagem Compadre ao se deparar com o novo muro caiado da Estrada de Ferro utiliza uma expressão que é capaz de, a partir de Walter Benjamin, suscitar as contradições da modernidade.

COMPADRE – Este homem da mandioca é doido! (reparando o muro) Ora realmente foi uma grande espiga este muro caiado, esta Babylonia indecente que a E. de Ferro mandou levantar aqui mesmo emfrente ao hotel (sic). Uma lembrança que até parece esquecimento! Encurralou os passageiros, prejudicou o passeio das famílias, e tirou a vista dos moradores da Rua Antônio Rocha. (Refletindo) Mas elle que tem o nome da Rua, que é prezidente da Câmara Municipal, não disse nada? Pois eu que sou macaco velho e que não mexo com gente grande! Está solto! (...) (A mudança da Capital, f.36). Grifo meu

A expressão lembrança que até parece esquecimento sintetiza o movimento moderno. É na velocidade, no passageiro, no efêmero que se terá a maior característica desse período vivido em São João del-Rei. A relação entre memória e morte suscitada nessa passagem, quando o personagem Compadre mistura dois tempos distintos em sua fala, remete a duas questões criadas pela construção de um muro e que está vinculado ao tempo moderno. A primeira é atrapalhar o fluxo das pessoas que embarcam e/ou desembarcam na estação, e a segunda questão está vinculada a um tempo antigo, pois dificulta a visão dos moradores e o passeio das famílias. Trata-se aqui de um autêntico momento de perigo, tal como definiu Benjamin em sua tese Sobre o conceito de história. Uma lembrança do passado para ordenar os rumos da história, pois para esquecer é preciso primeiro lembrar. Nesse exato momento, o personagem silencia, evocando uma ordem exterior ao citar o Presidente da Câmara, ex-diretor da EFOM e que empresta o nome para a rua onde fica localizado o muro.

Portanto, essa relação com o tempo existente nesse único espaço arquitetural, o muro, objeto que serve para delimitar uma divisão, uma fronteira, na realidade, para o personagem Roceiro, também dividiu o espaço em temporalidades distintas, possibilitando um movimento do imóvel. Nesse sentido, o acontecimento e o presente, que estão sempre ligados, remetem a um tempo pensado fora da continuidade histórica. A arquitetura está sempre vinculada à concretude, ao durável, ao “eterno”, numa tentativa de vencer o tempo. Este, ao contrário, está na ordem do cambiante e da surpresa, pois não é tangível e não tem forma concreta (Jacques, 2001: p.42-56).

Existe um tempo para olhar e para passear e um tempo mais dinâmico e que impede a própria circulação das pessoas. O moderno é apresentado nas peças de teatro de revista no movimento de caminhar pela cidade. É justamente esse caminhar que se torna problema para o personagem Compadre. Portanto, não permitindo aquilo que o flâneur possui de mais importante: caminhar nos tempos modernos, sem, necessariamente, ser lento, mas podendo ver e sentir a cidade nos seus pormenores.

Aquela embriaguez anamnésica, na qual o flâneur vagueia pela cidade, não se nutre apenas daquilo que lhe passa sensorialmente diante dos olhos, mas apodera-se frequentemente do simples saber, de dados inertes, como de algo experienciado e vivido. Este saber sentido transmite-se de uma pessoa para a outra, sobretudo oralmente. Porém, no decorrer do século XIX, ele se depositou também em uma literatura (Benjamin, 2006: p. 462 [M 1, 5]).

O personagem Compadre nesse trecho da peça traz à tona a discussão sobre memória e experiência, dois conceitos relevantes nas teorias benjaminianas. É nessa relação que presente e passado se encontram. No entanto, Benjamin percebe que a vida moderna traz como conseqüência a impossibilidade de narrar justamente pela incapacidade de experimentar. Benjamin tem total consciência da noção do tempo na modernidade, ou melhor, da temporalidade e da morte. Talvez, por isso, compreenda Baudelaire como aquele que descreve não somente aquilo que deve durar, mas entende, principalmente, a inspiração do poeta em escrever sobre aquilo que pertence à morte, sabendo que o ato de escrever é também um ato para vencer tanto a morte quanto o tempo. Essa é a luta para manter a memória, a palavra, as lembranças do passado e, por conseguinte, o não esquecimento do futuro. Por isso, Benjamin tem como objetivo “introduzir o tempo na escrita, que, por natureza, o excluiria” num movimento de “ir e vir entre as coisas e idéias” (Muricy, 1988: p.14).

No último poema de As Flores do Mal é a Morte que será “encarregada pelo poeta de livrar, enfim, o objeto privilegiado do desejo moderno, o ‘novo’” (Gagnebin, 2007: p. 52-3).

Ó Morte, ó capitão! Deixemos este cais!

Este país é o tédio! Ah, soltemos a vela!

Se o firmamento e o mar são negrumes fatais

O nosso coração, de clarões se constela!

Verte-nos seu veneno, ele é que nos conforta!

Tanto o cérebro nosso é de fogo incendido,

No abismo mergulhar, Inferno ou Céu, que importa?

Para o novo encontrar no mais conhecido! (Baudelaire, 2005: p.154-5).

É nesse sentido que se deve pensar a EFOM como um espaço representacional elaborado por um discurso político, cultural, ideológico e urbanístico de determinados homens ou grupos de homens que têm uma visada de mundo específica e com determinados interesses que podem ou não, coincidir com os praticantes ordinários da cidade.

Em uma das teses de Benjamin é possível perceber o que está em jogo quando em uma peça teatral, que tem a pretensão de apresentar a cidade através de seu objeto mais bem elaborado e representante da modernidade, abre espaço para evocar elementos importantes de um passado.

O cronista que narra profusamente os acontecimentos, sem distinguir grandes e pequenos, leva com isso a verdade de que nada do que alguma vez aconteceu pode ser dado por perdido para a história. Certamente, só à humanidade redimida cabe o passado em sua inteireza. Isso quer dizer: só à humanidade redimida o seu passado tornou-se citável em cada um dos seus instantes. Cada um dos instantes vividos por ela torna-se uma citation à l’ordre du jour – dia que é justamente, o do Juízo Final (Lövy, 2005: p. 54. Tese III).

O mundo novo está repleto de coisas do antigo, e esse passado espera a redenção pela rememoração integral do seu tempo. Por isso, a peça A mudança da capital ao mencionar elementos da vida cotidiana relacionados a uma edificação moderna permite entender determinadas apropriações sócio-culturais ficcionalizadas através dos enredos revisteiros.

Conclusão

A Estação da Estrada de Ferro é um espaço praticado, ou melhor, um lugar, vivido tanto por seus produtores quanto pelos seus consumidores que narram determinadas histórias localizadas no tempo e no espaço dando sentido, refletindo, espelhando, a história da cidade de São João del-Rei por meio de variados discursos que se entrecortam. As articulações fronteiriças entre o público e o privado na inserção de cada pessoa em seus itinerários, inclusive no uso das calçadas, pode criar maneiras de usar o espaço longe daquelas planificadas nos projetos urbanísticos, possibilitando a criação de formas singulares de utilização do espaço. O muro pode, talvez, demonstrar que houve uma mudança nos hábitos cotidianos e isso, não significa uma ruptura com um modo de vida e nem um afastamento da cidade em relação à EFOM.

A única construção que traz a visão de uma Babilônia na peça é o muro: não são os edifícios do complexo ferroviário e tudo aquilo que eles representam, não é a natureza com todas as suas belezas e, muito menos, a arquitetura barroca vivida intensamente desde o século XVIII em meio à modernidade são-joanense. Mas, ao mesmo tempo, é possível indagar que esse muro tenha sido comparado à Babilônia justamente por contrariar os atributos modernos do complexo ferroviário ao impedir o prazer e o deleite daqueles que passeiam pelas proximidades da EFOM de verem os edifícios modernos emoldurados pelas paisagens naturais de São João del-Rei.

A cidade necessita da construção de uma ordem simbólica que seja capaz de articular as diferentes leituras sociais possibilitando certa coerência dos códigos estabelecidos. Assim sendo, a cidade, motivadora desse modo de fazer teatral, não é feita somente de pedras, mas do valor atribuído a elas pelos próprios cidadãos sejam eles leitores especiais ou comuns da cidade. Enfim, pode-se afirmar que aquilo que existe no espaço urbano é que será o elemento primordial para elaboração de representações sociais e do próprio teatro de revista.


Notas

1 Caderno manuscrito – verso e anverso – e incompleto. O caderno é uma cópia para Duarte Ferreira.

2 Modesto de Paiva também escreveu as peças: Fica Teresa (1884), comédia em 1 ato; A onça (1897), revista em 3 atos e Falei bem ou falei mal? (1903), revista em 3 atos. Foi autor dos livros Canções do ermo (1877) e Noites de insônia (1892).

3 Conforme Augusto Viegas (1953: p. 98), as festividades no dia 29 foram suspensas devido ao falecimento do Ministro da Agricultura ocorrido na casa de D. Maria Teresa Batista Machado, local onde ficara hospedado em São João del-Rei.

4 Instância hidromineral próxima a São João del-Rei.

5 Foi decidido pelos empresários que a Ferrovia utilizaria a bitola estreita de 0,76m – distância entre os trilhos da linha ferroviária – devido aos baixos custos de instalação e de manutenção. A velocidade alcançada era de 30 km/h. No Museu Ferroviário de São João del-Rei ainda pode ser encontrada a primeira locomotiva Baldwins, fabricada nos Estados Unidos, com o vagão em que viajou o Imperador D. Pedro II.

6 O jornal Gazeta Mineira circulou de 1 de janeiro de 1884 a 24 de novembro de 1894, propriedade de Pedro Alves Moreira e Cia. (Cintra, 1982: p. 13).

7 É na gestão de Antônio Francisco da Rocha na Câmara Municipal que será inaugurado o “Palco do novo teatro Municipal” de São João del-Rei (1893). No evento foi apresentado o espetáculo Dalila pela “Companhia Dramática dirigida pelo ator Phebo, e da qual fazia parte o notável artista patrício Furtado Coelho” (Guerra, s/d: p.77).


Referências

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CLÁUDIO GUILARDUCI é doutor em Teatro pela UNIRIO, coordenador do Laboratório Teórico-Prático do Brincar-Labrinc/UEMG.

CLÁUDIO GUILARDUCI é PHD in Theater from UNIRIO, coordinator of Laboratório Teórico-Prático do Brincar-Labrinc/UEMG.