A LITERATURA DRAMÁTICA DE PLÍNIO MARCOS: cenas da(s) cidade(s)

THE DRAMATIC LITERATURE OF PLÍNIO MARCOS: city scenes

Kátia Rodrigues Paranhos

(UFU/MG)

Resumo

A literatura dramática de Plínio Marcos atinge o leitor e/ou espectador como estilete. Provoca, ao mesmo tempo, repulsa e desperta uma angústia solitária, induzindo à  necessidade urgente de intervenção. As relações de poder são estabelecidas por uma fauna de alcagüetes, prostitutas, homossexuais, cafetões e cafetinas, policiais corruptos, desempregados, prisioneiros assassinos, loucos, débeis mentais, meninos abandonados: seres jogados em cena sem nenhuma cortina de fumaça. De olho nesse universo, este artigo aborda os sentidos das representações sociais da(s) cidade(s) a partir dos textos de Plínio Marcos. Nos seus escritos avultam como temas a solidão e a decadência humana, o círculo vicioso da tortura mútua e a absoluta falta de sentido nas vidas degradadas, a sexualidade e os padrões de comportamento dominantes, o beco sem saída da miséria e a violência, a superexploração do trabalho humano e a morte prematura como horizonte permanente. Sobressaem, portanto, sujeitos sociais distintos, marcados pela tragédia individual e coletiva, que circulam pelo espaço urbano.

Palavras-chave | Plínio Marcos | cidade(s) | teatro engajado | literatura dramática | representações sociais

Abstract

Plinio Marcos’s dramatic literature hits the reader and/or audience like a blade. It incites and, at the same time, it repulses and causes a solitary anguish, leading to an urgent need to intervention. Relations of power are established by a fauna of stool pigeons, prostitutes, homosexuals, pimps, corrupt police officers, unemployed, imprisoned murderers, madmen, feebleminded, abandoned boys: people thrown into the scene without any smoke screen. With an eye on such universe, this article approaches the social representations of city(ies)  in the work of Plinio Marcos. His writings’ topics are the human solitude and decadence, the vicious circle of mutual torture and the absolute absence of meaning in degraded lives, the sexuality and the dominant patterns of behavior, the dead end of misery and violence, the super exploitation of labor, and the early death as a permanent horizon. Therefore, distinct social subjects, marked by individual or collective tragedy, who circulate around the city standout.

Keywords | Plinio Marcos | city(ies) | engaged theater | dramatic literature | social representations

 

Militância, arte e política

Entre 1979 e 1984, o Grupo de Teatro Forja, ligado ao Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo (SP), notabilizou-se por encenar, na maioria das vezes, textos escritos coletivamente.  A primeira experiência de montagem de dramaturgos fora do meio operário ocorreu em 1981, com a apresentação de Operário em construção, cuja base são poemas de Maiakóvisky, Vinicius de Moraes e Tiago de Melo. Em 1984, foi produzida a peça Dois perdidos numa noite suja, escrita em 1966, por ocasião das comemorações dos cinco anos de existência do grupo. Aliás, o autor da peça, o dramaturgo Plínio Marcos, era figura constante no ABC paulista: participou de numerosos debates, seminários e/ou palestras promovidos pelos sindicatos operários, assim como teve algumas de suas peças encenadas pelos grupos de teatro da região.1

Segundo Tin Urbinatti, naquele momento as TVs estavam veiculando intensamente o tema da pena de morte. A partir desse dado, começamos a ler alguns textos do Gramsci e a peça do Plínio. Discutimos coletivamente a questão da pena de morte e passamos a entrevistar e recolher relatos de desempregados na região. Dois perdidos junta o universo da marginalidade ao do desemprego, o que dá margem para se pensar o que é ser ‘bandido’? (URBINATTI in: PARANHOS, 2002: p. 178). 

Com efeito, entre 1981 e 1985, a indústria automobilística brasileira despediu dezenas de milhares de operários. No ABC, as demissões chegaram, em agosto de 1981, a 50 mil metalúrgicos. Em São Bernardo — “capital do desemprego” —, contavam-se vários casos, como o do operário cearense Rubens Menezes Cardoso que, desesperado com a demissão, ameaçou se jogar do 17º andar do prédio da prefeitura, ou o de um metalúrgico desempregado que, ao receber a conta de gás, entrou em crise de agitação psicomotora e destruiu os móveis de sua casa (Cf. PARANHOS, 2002: p. 190).

Dito isso, em geral as peças de Plínio Marcos atingem o leitor e/ou espectador como estilete: ao mesmo tempo, provocam repulsa e despertam uma angústia solitária, a necessidade urgente de intervenção. O terror e a piedade no grau mais absoluto; diálogos exatos, crus, ferinos, explosões de ódio e violência incontidos, humilhações, provocações sadomasoquistas, rastejamento abjeto de humilhados e ofendidos, círculos de tensão entre algozes e vítimas que intercambiam seus papéis; relações de poder estabelecidas confusamente num emaranhado de seres ignorados pelos “cidadãos contribuintes”, uma fauna de alcaguetes, prostitutas, homossexuais, cafetões e cafetinas, policiais corruptos, desempregados, prisioneiros assassinos, loucos, débeis mentais, meninos abandonados: seres jogados em cena sem nenhuma cortina de fumaça.

Em seus escritos, ele procura denunciar e contestar o modelo capitalista de produção e consequentemente o próprio regime militar, instituído no país em 1964. Por isso, Plínio Marcos foi um dos autores mais perseguidos de sua época, quando a liberdade de expressão e a democracia foram extirpadas para dar lugar a um regime ditatorial opressor. A simples menção a seu nome já era sinônimo de problema. A censura federal, por exemplo, o via como um maldito, pornográfico e subversivo. Na sociedade, ele se tornou figura polêmica porque punha em discussão o “excluído social” e outros aspectos pouco discutidos durante a ditadura militar, quando ter liberdade de expressão era muito arriscado, por isso era um ato de coragem2.

Plínio Marcos escrevia conforme o que via na sociedade e o que vivenciava em sua vida, trafegando por “esse Brasil polimorfo, tônico e teimoso, subjugado pelas diferenças sociais, pela miséria, pelo abandono, um mundo de excluídos, mas que se conta por milhões” (MOSTAÇO in: MAIA, CONTRERAS e PINHEIRO, 2002: p. 10).  Autodenominava-se “repórter de um tempo mau”; por isso é visto como um homem que

pariu e deu voz a uma formidável galeria de criaturas: ternas, líricas, truculentas, vadias, esperançosas, vitais em sua sobrevivência, seres mediatizados pelo real e pelo imaginário, lugar onde a ficção nasce, grande parte das vezes, com um grito de denúncia ou desejo de reconhecimento (MOSTAÇO in: MAIA, CONTRERAS e PINHEIRO, 2002: p. 10).

Nas suas peças, avultam como temas a solidão e a decadência humana, o círculo vicioso da tortura mútua e a absoluta falta de sentido nas vidas degradadas, o beco sem saída da miséria e a violência, a superexploração do trabalho humano e a morte prematura como horizonte permanente. Sobressaem, portanto, sujeitos sociais distintos, marcados pela tragédia individual e coletiva, que circulam pelo espaço urbano. Os personagens subvertem até certo tipo de teatro engajado em voga nos anos de 1960 e 1970, pois não veiculam, em regra, uma mensagem otimista ou positiva quanto à possibilidade de se ter alguma esperança de mudança social. O que importa é subsistir, seja como for: sem solidariedade de classe, sem confiança no próximo. Seus personagens se debatem num mundo que não oferece vislumbre de redenção; estão envolvidos em situações mesquinhas e sórdidas, em que a luta pela sobrevivência e pelo dinheiro não tem dignidade; via de regra, enveredam para a marginalidade mais violenta a fim de atingir seus objetivos (Ver PARANHOS, 2007).

Os cenários apresentados não condizem em nada com os ideais do nacionalismo cego, do patriotismo orgulhoso tão disseminado após 1964.  A maioria dos textos de Plínio Marcos encenados nos palcos brasileiros ilustra a luta pela sobrevivência de sujeitos que, até então, eram esquecidos ou escondidos por certos segmentos por se distanciarem dos padrões de comportamento dominante. Aparece representada aquela parcela da população a quem foi negado o mínimo de dignidade, impedindo qualquer idealismo ou esperança de mudança, e que tem como única forma de protesto a violência, que não se volta só às classes dominantes, mas também aos pares dessa população.

Não custa lembrar que, na sua coluna “Janela Santista” do Jornal da Orla3,  “trazia histórias e apresentava o olhar do cronista sobre a cidade onde nasceu e cresceu, coisa que sempre fez questão de mostrar em suas peças, seus textos e nos jornais em que colaborou”  (MAIA, CONTRERAS e PINHEIRO, 2002: p. 26).

Pois é, esse sou eu: saltimbanco do Macuco, meu bairro querido, o bairro da minha vida, o pedaço de mundo que me deu tutano, sustento e energia, o pedaço de mundo que forjou em mim o amor à vida e a vontade de lutar contra qualquer opressor. Por ser do Macuco, me fiz guerreiro. Por ser guerreiro, me fiz lutador pela liberdade de expressão. Por tudo isso, escrevi Barrela e, depois dela, um monte de peças (MARCOS in: MAIA, CONTRERAS e PINHEIRO, 2002: p. 26-27).

Plínio também escrevia diariamente sobre futebol, tema que conhecia muito bem, e mesmo escrevendo sobre esse assunto, não perdia a oportunidade de criticar o regime militar. Além disso, alguns temas eram constantes nos textos do cronista, como a violência urbana, a miséria nas grandes cidades, a delinquência juvenil, as condições precárias dos presídios brasileiros, o que o que muitas vezes levou à demissão de Plínio Marcos de jornais e revistas.4

Paulo Roberto Correia de Oliveira, ao estudar a trajetória do teatro brasileiro desde o final do século XIX até as novas tendências cênicas, considera Plínio Marcos um autodidata, que

construiu peças de grande intensidade dramática e impacto, conduzindo para o teatro com realismo brutal as tragédias das classes marginalizadas dos centros urbanos do Brasil (OLIVEIRA, 1999: p. 139).

Para Márcio Roberto Belani, esse modo de pensar peculiar do dramaturgo santista, o fez

uma mistura eclética de socialista, anarquista e comunista – ainda que rejeitasse todos esses rótulos -, sem teorias ou fórmulas de mudança social acabadas. Podemos, se o desejarmos, classificá-lo como humanista que congrega em si os vários princípios comuns a essas doutrinas políticas, mas que se desenvolveram nesse autor plasmados pela experiência prática de vida em meio ao povo. Plínio Marcos desejava uma mudança social, não necessariamente uma revolução armada, mas que certamente haveria de derrubar alguns dos pilares de sustentação desse modelo de sociedade que se tinha na época como, por exemplo, a exploração exagerada da mais-valia, a concentração de poderes por uma minoria, o veto à liberdade de expressão, etc. Embora não houvesse desenvolvido ainda uma forma lapidada do que deveria ser essa transformação social, essa ação renovadora caminharia ao lado de uma mudança individual, espiritual, conforme podemos pressentir na leitura de suas peças em convergência com o seu modo de agir e pensar nessa época (BELANI, 2006: p. 40-41).

Teatro e política estão umbilicalmente ligados à questão da função social da arte. Por isso, autores como Plínio Marcos, que falam sobre a realidade brasileira, são engajados. Isso significa dizer que o teatro é uma forma de conhecimento da sociedade. Assim, mesmo aqueles que se autoproclamam não-engajados ou apolíticos, na verdade acabam assumindo uma posição também política. A chamada “tomada de posição”, seja ela qual for, é exatamente o que procura exprimir a noção de “engajamento” ou do dramaturgo como figura que intervém criticamente na esfera pública, trazendo consigo não só a transgressão da ordem e a crítica do existente, mas também a crítica da sua própria inserção no modo de produção capitalista, e, portanto, a crítica da forma e do conteúdo de sua própria atividade. Engajamento “político” ou “legítimo”, como lembra Eric Hobsbawm (1998: 146), noutro contexto, “pode servir para contrabalançar a tendência crescente de olhar para dentro”, no caso, “o autoisolamento da academia” (1988: 154) apontando, por assim dizer, para além dos circuitos tradicionais.

Da página à cidade

Não é demais ressaltar que a dramaturgia de Plínio Marcos focaliza, de modo certeiro, a vida dos menos favorecidos, resgata a memória da população marginalizada (considerada apenas como estatística indesejada) e leva a se pensar hoje que suas obras estão mais vivas do que nunca, pois retratam situações sociais que ainda persistem nos espaços urbanos. Por exemplo, em Navalha na carne (1967) deparamos com três personagens do submundo que se encontram num quarto de hotel barato: Neusa Sueli, a prostituta, Vado, seu cafetão, e Veludo, o homossexual. Ao apresentar uma peça que foge dos padrões temáticos e estéticos do período em que foi escrita, Plínio Marcos nos obriga a considerar não apenas como as relações de poder se manifestam em seu texto dramático, mas também como elas influenciam as definições de “literatura” e “arte”.

Nesse sentido, a utilização de uma linguagem transgressora aliada à arte se mistura com as vivências experimentadas pelas margens. Assim, sujeitos embrutecidos pelas adversidades do capital se digladiam tanto num “sórdido quarto de hotel de quinta classe”, como na selva das cidades, que via de regra não tem lugar para todos. Para Neusa Sueli, o(s) quarto(s) e a cidade são o “lugar” do trabalho, enquanto Vado e Veludo se divertem na sinuca, pelas ruas ou “queimando erva e dinheiro (...) e eu que me dane na viração” (MARCOS, S/D(a): p. 19). Dia e noite se repetem, num cotidiano massacrante.

Hoje foi um dia de lascar. Andei pra baixo e pra cima, mais de mil vezes. Só peguei um trouxa na noite inteira. Um miserável que parecia um porco. Pesava mais de mil quilos. (...) Às vezes chego a pensar: Poxa, será que eu sou gente? Será que eu, você, o Veludo, somos gente? Chego até a duvidar. Duvido que gente de verdade viva assim, um aporrinhando o outro, um se servindo do outro. Isso não pode ser coisa direita. Isso é uma bosta (MARCOS, S/D(a): p. 46).

Em Quando as máquinas param (1967), o dramaturgo apresenta a situação de um operário desqualificado e sem emprego. Zé, o operário em questão, vive uma relação conjugal que se equilibra entre a harmonia e a falta de expectativa social. Na peça, isenta de bandidos de qualquer espécie, Plínio expõe a relação amorosa dentro de uma estrutura familiar. Nina, a esposa, sustenta a casa como costureira, enquanto o marido todos os dias anda “pra cima e pra baixo e não há meio de arrumar uma vaga” (MARCOS, S/D: p. 16). Para espairecer, restam as novelas para Nina, o futebol e o boteco para Zé. Entretanto, uma novidade transforma, de modo radical, a vida do casal: a gravidez de Nina. Esse fato detona um conflito avassalador capaz de alterar, de vez, o quadro doméstico.

Eu não sei mais nada, Zé. Sempre estive do seu lado. Topei todas as paradas com você. Desde que casamos, nunca fomos num cinema, nunca passeamos, nunca comprei um vestido novo e nunca me queixei. (...) E assim, a gente ia. Aos trancos e barrancos, mas ia! Íamos ter filhos, íamos ser como todo mundo. (...) Agora, não sei. Não sei mais nada. Só sei que estou grávida. E vou ter meu filho (MARCOS, S/D: p. 60).

Para esses personagens, que abundam nas páginas de Plínio Marcos, a cidade é lugar do trabalho. É exatamente isso que norteia a temática de Homens de papel (1968), que narra a história de um grupo de homens e mulheres cujo ofício é catar papel nas ruas. Eles são vítimas de um explorador que lhes compra o material pelo preço que ele mesmo determina. “A gente queria vir para a cidade grande (...)”. Mas, “aqui é cada um pra si” (MARCOS, 1978: p. 30 e p. 34).

Aliás, não é possível desvencilhar a experiência pessoal de Plínio Marcos, como um migrante vindo de Santos, dos seus textos. Esses entrecruzamentos podem ser destacados na própria escritura de Dois perdidos numa noite suja, na qual as relações entre história e ficção estão muito próximas, para não dizer imbricadas. Segundo Lucinéia Contiero, apoiada no depoimento da irmã de Plínio, depois que ele dormiu algumas noites na rodoviária e de ter sido ajudado por uma mulher, ficando alguns dias em sua casa, saiu desta

para ajeitar-se num porão, no centro, com “três bandidos”. [...] certa noite, depois da viração para conseguir uns trocados, Plínio voltou para o porão trazendo um par de sapatos, “que teria comprado ou conseguido sei lá” [...] a visão desse par de sapatos causou furor entre os outros “inquilinos”, que brigaram entre si para ver quem teria o direito ao roubo. A refrega forçou Plínio a fugir dali com os pertences na mão, sabendo que perdera o abrigo de vez (CONTIERO, 2007: p. 129-130).

Dois perdidos numa noite suja (1966) é a reescritura de um conto do italiano Alberto Moravia, “O terror de Roma”. No conto e na peça aparece o mesmo ponto da discórdia, objeto de conflito: um par de sapatos novos. O enredo gira em torno de Tonho e Paco, dois miseráveis solitários que ganham a vida no mercado enchendo ou esvaziando caminhões e que, à noite, dividem com as pulgas um quarto de pensão. Segundo Alberto d’Aversa,

a assimilação do conto de Moravia foi perfeita, total e absoluta; o conto desapareceu e no seu lugar nasceu uma peça nova e original, de uma originalidade teatral, ou seja, baseada sobre a novidade da linguagem, a precisão dos golpes de cenas e de nós dramáticos, a temperatura das situações, a eficácia das personagens, a verossímil possibilidade da fábula (AVERSA in: VIEIRA, 1994: p. 67-68).

A peça foi apresentada pela primeira vez em 1966 para uma platéia reduzidíssima no bar Ponto de Encontro, centro de São Paulo, com Ademir Rocha (Tonho) e o próprio Plínio (Paco). Naquele momento, o dramaturgo era ator e técnico da TV Tupi.

Ofereci a peça a todo mundo, e ninguém quis. Diziam que eu estava ficando maluco, que peça com palavrão não ia acontecer nunca. Aí eu resolvi montar a peça (...). Tinha duas pessoas que pagaram a entrada; três, com um bêbado que queria urinar no nosso camarim (MARCOS in: VIEIRA, 1994: p. 68-69).

Para Paulo Vieira,

foram as três primeiras pessoas que tiveram o prazer de presenciar o nascimento de Paco e Tonho, os desvalidos que se tornaram um dos marcos na dramaturgia brasileira dos anos sessenta, e que a despeito do autor trazia em sua linguagem muito dos códigos de vanguarda do momento (VIEIRA, 1994: p. 69).

A trama se passa num quarto de hospedagem simbolizando o “entre quatro paredes” característico de outras peças. Interiorano, com casa, mãe e pai nas Minas Gerais, Tonho acredita que pode sair do gueto da miséria. Criatura que oscila entre a loucura e a maldade lúcida, Paco não tem saída nem origem. Na primeira cena, estala o conflito, num diálogo violento que faz progredir a ação com a força desenfreada do instinto animal. Ambos põem em objetos a única chance de sobrevivência: para Tonho, a vida digna, decente depende de um par de “pisantes” (sapatos) novos que lhe possibilitem se candidatar a um emprego; Paco, com uma flauta roubada, ganharia alguns trocados — ele encarna o mal, às vezes em estado absoluto, embrutecido até o âmago, definido pela fala de Tonho: “você deve ter levado uma vida desgraçada pra não acreditar em ninguém” (MARCOS, 2003: p. 99).

A peça desce num espiral de violência verbal até o extremo da miséria moral e física. Paco encarna os diabos do inferno, noucateia Tonho da primeira à última cena, quando é nocauteado. Numa inversão súbita, Tonho incorpora a personalidade insana do outro, assumindo suas características sádicas. É tal a virulência dos ataques de Paco que a revolta de Tonho parece justificada: “Se acabou, malandro. Se apagou. Foi pras picas. Por que você não ri agora, paspalho? Por que não ri? Eu estou estourando de rir! Até danço de alegria! Eu sou mau! Eu sou o Tonho Maluco, o Perigoso! Mau pacas!” (MARCOS, 2003: p. 164). Plínio Marcos elabora um teorema trágico da vinculação da violência à miséria.

Dois perdidos numa noite suja retoma tanto o problema social quanto o existencial numa dimensão histórica dos dramas enfrentados pelos trabalhadores na sociedade capitalista. Em cena, a luta pela sobrevivência, a solidão nas grandes metrópoles, o trabalho precarizado, o desemprego, a situação de abandono no campo, o individualismo e o narcisismo dos próprios operários, a circularidade entre o “bem” e “mal”, a exposição dos preconceitos sociais, a busca pelo “caminho fácil” do crime, o desânimo, a crueldade, a violência.

Décio de Almeida Prado, no programa da peça encenada no Arena em 1967, afirma que

em Dois perdidos numa noite suja Plínio Marcos explora um filão típico do teatro moderno, a partir de Esperando Godot: dois farrapos humanos ligados por uma relação complexa, de companheirismo e inimizade, de ódio visível e, também, quem sabe, afeição subterrânea. Juntos, não chegam a constituir um par de amigos. Mas, separados, mergulhariam na solidão, o que seria ainda pior. O diálogo que travam é uma exploração constante das fraquezas recíprocas, um intercâmbio de pequenos sadismos. São duas figuras dramáticas (...). A linguagem da peça é tão suja quanto a noite que envolve as personagens, segundo o título, certamente a mais desbocada que já vimos em peça nacional (PRADO, 1987: p. 152-153).

Para João Apolinário, a peça é uma pequena obra-prima neorrealista:

há no conflito entre os ‘dois perdidos’ uma afirmação crítica sobre a dissolução das classes, que almeja uma solução no sentido de exemplificar a justiça que será um dia o homem atingir a igualdade perante o homem (...). O final da peça é a hemorragia do câncer. Impiedoso. Cruel. Anti-romântico. As expressões de gíria que o autor usa criam o clima do lugar onde se fixa a ação, mas não desvirtuam as riquezas das essências de uma grande autenticidade trágica, caracterizando cada um dos dois marginais, que se digladiam em torno da injustiça social do nosso mundo, simbolizado num miserável par de sapatos (APOLINÁRIO in: VIEIRA, 1994: p. 73).

Como já mencionado anteriormente, em 1984 os atores-operários de São Bernardo leram e representaram Plínio Marcos de acordo com seu repertório sociocultural. Esse processo complexo se ampliava e se fortalecia com as discussões e os debates promovidos após as apresentações do Forja em seu sindicato, noutros sindicatos e em diferentes bairros no ABC. Era uma oportunidade a mais para trocar idéias sobre os textos encenados. A platéia subia no palco e seus componentes, ultrapassando os limites de meros espectadores reflexivos, passavam a integrar o elenco e construir novas cenas, com diferentes discursos que faziam a intertextualidade do já dramatizado. Por sinal, ao se referir aos diferentes gêneros literários, Benoît Denis salienta que o teatro é um “lugar” importante do engajamento; é exatamente aquele que propicia as formas mais diretas entre escritor e público.

Através da representação teatral, as relações entre o autor e o público se estabelecem como num tempo real, num tipo de imediatidade de troca, um pouco ao modo pelo qual um orador galvaniza a sua audiência ou a engaja na causa que defende (DENIS, 2002: p. 83).

Os diálogos travados entre Paco, Tonho e o Grupo Forja vão do teatro à existência miserável dos sujeitos despossuídos que habitam o mundo do trabalho. A cidade moderna é lugar dos sonhos e pesadelos, da industrialização moderna, do desemprego e da pobreza. Personagens se confundem com os atores-operários, marginais que circulam pela página e pelo espaço urbano.

Arte e política se misturam e se contaminam, negociando continuamente a resistência e a gestão daquilo que é em relação ao que pode vir a ser, pondo em tensão o que está “dentro” e o que está “fora” do sistema instituído. Os atores-operários de São Bernardo, por meio das peças teatrais, fundiam diferentes expressões, imagens, metáforas, alegorias e outros elementos que, em conjunto, compunham um cenário significativo de articulações de um modo de pensar e agir, uma visão do mundo. Esse resultado reitera a noção de que as formas e produções culturais se criam e se recriam na trama das relações sociais, da produção e reprodução de toda a sociedade e de suas partes constitutivas. O teatro produzido na periferia urbana se associava, assim, com os movimentos sociais, o que evidenciava o aparecimento de novos públicos, novas temáticas, novas linguagens e a dinamização de canais não convencionais de comunicação. Como afirmou certa vez Eric Hobsbawm, numa passagem bastante elucidativa,

apesar (...) de nossas gerações terem sofrido do capitalismo uma lavagem cerebral para acreditar que a vida é o que o dinheiro pode comprar (...). Há mesmo mais do que o desespero quanto a uma sociedade incapaz de dar a seus membros o que eles precisam, uma sociedade que força cada indivíduo ou cada grupo a cuidar de si próprio e não se importar com o resto. Já foi dito: ‘Dentro de cada trabalhador existe um ser humano tentando se libertar’ (HOBSBAWM, 1987: p. 388).

Caminhando por trilhas diversas, Plínio Marcos se notabilizou, entre outras coisas, pelo engajamento político aliado à crítica à sociedade capitalista. Como um sismógrafo de seu tempo, lançou idéias, perguntas e desafios no campo das artes que ecoam até os dias de hoje.


Notas

1 Inúmeros são os exemplos de intervenção política de Plínio Marcos na periferia de São Paulo. Em outubro de 1981, por exemplo, foi apresentada no sindicato de São Bernardo a peça Homens de papel e em seguida ocorreu uma palestra do autor com os presentes. Cf. PARANHOS, 2002: p. 180.

2 Plínio Marcos (1935–99) teve várias profissões ao longo da vida, mas graças às peças teatrais e às crônicas que publicou em jornais como Última hora, O Pasquim, Folha de S. Paulo e na revista Veja, ele ficou conhecido como dramaturgo e cronista. Ver, dentre outros, MAIA, CONTRERAS e PINHEIRO, 2002.

3 O Jornal da Orla e a revista mensal Caros Amigos, ambos opções alternativas no mercado editorial, foram os últimos veículos em que Plínio colaborou como cronista no final da década de 1990.

4 Em 1975, por exemplo, Plínio Marcos foi contratado pelo jornalista Mino Carta para escrever uma coluna sobre futebol na revista Veja, mas por pouco tempo, pois ele logo foi demitido da revista, devido às criticas que fazia à censura e à ditadura militar, por meio dos textos sobre futebol. Ver CONTIERO, 2007: p. 268-269. 


Referências

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DENIS, Benît. Literatura e engajamento: de Pascal a Sartre. Bauru: Edusc, 2002.

CONTIERO, Lucinéia. Plínio Marcos: uma biografia. Tese (Doutorado em Letras) – Unesp, Assis, 2007.

HOBSBAWM, Eric J. A década de 70: sindicalismo sem sindicalistas? In: Mundos do trabalho: novos estudos sobre história operária. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

________________.  Sobre história. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

MAIA, Fred, CONTRERAS, Javier Arancibia e PINHEIRO, Vinícius. Plínio Marcos, a crônica dos que não têm voz. São Paulo: Boitempo, 2002.

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____________. Navalha na carne/ Quando as máquinas param. São Paulo: Círculo do Livro, S/D(a).

____________. Homens de papel. São Paulo: Global, 1978.

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OLIVEIRA, Paulo Roberto Correia de. Aspectos do teatro brasileiro. Curitiba: Juruá, 1999.

PARANHOS, Kátia Rodrigues. Era uma vez em São Bernardo: o discurso sindical dos metalúrgicos (1971/1982). Campinas: Editora da Unicamp/Centro de Memória – Unicamp, 1999.

______________________.  Mentes que brilham: sindicalismo e práticas culturais dos metalúrgicos de São Bernardo. Tese (Doutorado em História) — IFCH/Unicamp, Campinas, 2002.

____________________. O grupo de teatro Forja e Plínio Marcos: “Dois perdidos numa noite suja”. Perseu: História, Memória e Política – Revista do Centro Sérgio Buarque de Holanda, v. 1, n.1, São Paulo, Fundação Perseu Abramo, 2007.

PRADO, Décio de Almeida. Dois perdidos numa noite suja. Exercício findo. São Paulo: Perspectiva, 1987.

VIEIRA, Paulo. Plínio Marcos, a flor e o mal. Rio de Janeiro: Firmo, 1994.

KÁTIA RODRIGUES PARANHOS é Doutora em História Social pela Unicamp. Professora dos cursos de graduação em História e pós-graduação em História da Universidade Federal de Uberlândia/UFU. Pesquisadora do CNPq e da Fapemig. Autora do livro Era uma vez em São Bernardo: o discurso sindical dos metalúrgicos (1971/1982). Campinas: Editora da Unicamp/Centro de Memória – Unicamp, 1999. Editora de ArtCultura: Revista de História, Cultura e Arte.

KÁTIA RODRIGUES PARANHOS is a PhD in Social History (UNICAMP). Professor of undergraduate and graduate History courses at the Federal University of Uberlândia/UFU. CNPq and FAPEMIG Researcher. Author of the book  Era uma vez em São Bernardo: o discurso sindical dos metalúrgicos (1971/1982) (Once upon a time in São Bernardo: the steal workers' unionist discourse (1971/1982). Campinas: Editora da UNICAMP/Centro de Memória-UNICAMP, 1999.  Publisher of the periodic ArtCultura: Revista de História, Cultura e Arte.