A POESIA PERFORMÁTICA DE HÉLIO OITICICA

THE PERFORMATIC POETRY OF HELIO OITICICA

Patrícia Dias Guimarães

Livre pesquisadora

Resumo

O artigo trata da Poética de Helio Oiticica, no aspecto que problematiza criticamente o conceito de arte e obra em favor do ato poético relativo à experiência do Corpo.  Focalizando a poesia em processo, ou seja, a invenção de linguagem enquanto performance corporal, questiona a compartimentação entre arte e não arte e/ou entre meios, gêneros e movimentos artísticos. Segundo sua leitura da antropofagia de Oswald de Andrade, propõe uma poética ilimitada que denominou Ambiental.

Palavras-chave | Helio Oiticica | arte brasileira | experimentalismo brasileiro | performance | antropofagia


Abstract

The text deals with Helio Oiticica Poetics, observing in a critical manner the concept of art and artwork, favouring the poetical act relative to Body experience. Focusing poetry process, so to say, the invention of language as body performance, questions the partition between art and non-art and or between means, genres and artistic movements, proposing through the bias it lends to Oswald de Andrade´s Anthropophagi, an unlimited Poetics he named as Ambiental.

Keywords | Helio Oiticica | Brazilian art | Brazilian experimentalism | performance | anthropophagy

 

Ao transferir o “problema da cor” do plano do quadro para o espaço ambiente, Hélio Oiticica torna-se propositor de uma poética auto nomeada “ambiental”, “comportamental”, e/ou “experimental”, focada nos atos concretos e simbólicos do Corpo. Situada para além da pintura, abrange, efetivamente, a invenção de objetos, ambientes, performances, cinema experimental, textos críticos, contos, poemas, relatos sobre suas experiências e outros escritos. O problema que a motiva diz respeito a uma disjunção essencial processada na experiência: tal como Oiticica escreveu, “a cor já é significação” (FIGUEIREDO, 1986, p 49), ou seja, já é signo. Em sua aptidão ao deslocamento e à geração de diferença qualitativa, no signo acontece a mínima poesia. Por sua vez, o Corpo - misto de matéria e pensamento-, constitui-se por disjunção análoga àquela que preside o signo. Revelando vocação poética e performática, permanece em devir progressivo no tempo-espaço concreto e simbólico da experiência. Começo e fim da poesia, o ato corporal situa-se na paisagem do mundo e na duração, tal como a palavra se inscreve na página e curso da escrita/leitura do texto e a performance do ator no ambiente e desenrolar da cena. Na poética Ambiental de HO, o espaço/paisagem/página/cena, sempre relativo à experiência corporal, adquire, a mobilidade usualmente atribuída ao tempo. Assim toma o aspecto de um caminho sempre bifurcado a percorrer, cuja trilha em contínua expansão se assemelha a imagem de um labirinto sem centro. Em contrapartida, o tempo experimentado no corpo assume a simultaneidade característica do espaço e flui em todas as direções, conectando, em uma trama, crescentemente dispersa, o passado, o presente e o futuro da poesia. A linguagem-poesia instaura uma geografia e uma história regidas, respectivamente, pelo conceito de espaço ilimitado e de tempo sem tempo.

À primeira leitura enigmática, a frase avulsa anotada no diário de HO, em janeiro de 1961, “Aspiro ao Grande Labirinto” (FIGUEIREDO, 1986: p. 26), pode ser lida como metáfora do espaço-tempo vivido, tipo de construção processada nos corpos. Mais ainda, como metáfora do ‘ambiente da linguagem’. Em acepção alusiva à leitura antropológica, entenda-se por linguagem a instância que dá sentido e lugar aos corpos, organizando a cena do mundo em que habitam. Caos estruturado em cosmo, a ordem do mundo equivale àquela da linguagem, e, na sugestão de HO, nada permanece estático nesse ambiente heterogêneo e de limites imprecisos. Leitura aceita por Ludwig Wittgenstein na investigação filosófica que empreende sobre a linguagem - referência no debate em torno do conceito de arte nos anos 1960-70, seja para as tendências artísticas ditas conceituais, seja por outras mais apegadas ao sensorial. Figurando a linguagem como “labirinto de caminhos” (WITTGENSTEIN, 2000: p. 92), Wittgenstein reconhece a impossibilidade de converter seu todo complexo a uma teoria geral. Em revanche, formula uma ‘teoria do sentido’ que o toma por efeito de atos de fala inscritos em práticas comportamentais concretas situadas em contextos sócio-culturais determinados. Sob esse viés pragmático, a proposição, entendida como mínimo enunciado potencialmente significativo, ganha sentido somente em “jogos de linguagem”: práticas coletivas regidas por regras conhecidas e lances ao acaso. Tal como acontece em qualquer jogo, seu resultado seria circunstancial. Daí a “vagueza” do sentido, ou seja, sua mobilidade intrínseca, capaz de precipitar-se apenas em um contexto sócio-histórico determinado. Se circunscrito à cultura, o sentido de arte dependeria de seus usos (WITTGENSTEIN, 2000: p. 63) em contextos concretos. Porém, enquanto linguagem em processo, a poesia presume um jogo contra toda regra, situado à margem da geografia cultural e

Na escrita de Oiticica, o uso de termos como “invenção, vivência, conceito, experiência, proposição, programa e/ou poema”, considerados como afins, vêm substituir a idéia de arte e objeto-obra por uma poesia do ato corporal do qual o “poema” seria efeito. Uso que apaga a linha nítida de fronteira entre o conceito de arte enquanto técnica especializada, idealidade, ficção, objeto estético, obra formalizada, etc. e tudo que diz respeito a não-arte. Esse conceito negativo circunscreve a paisagem do cotidiano e sua experiência concreta, compreendendo sensações, gestos e falas ordinários, além do repertório dito imaterial das idéias, do imaginário simbólico, do devaneio, do sonho e da memória. Dissolvida a demarcação entre arte e não-arte, Oiticica decide embaralhar entre si as linguagens artísticas conhecidas: poesia e prosa, música, dança, arquitetura, cinema, artes visuais, teatro, etc., e assimilar todas à experiência extra-artística. Procedendo de acordo com o método e o conceito de linguagem proposto pela poética surrealista de Breton, assimila o processo da ‘arte’ à experiência do real. Assimilado à experiência do corpo, o sentido do real mostra-se, potencialmente, tão vago quanto pode ser aquele da proposição, do sonho, do devaneio e da memória (BRETON, 1979: p 29). A maneira entrecortada do fluxo e refluxo de rememoração, a poética Ambiental de Oiticica “retoma” criticamente, não apenas a linguagem do Surrealismo e ainda esta ou aquela tendência artística de grupo ou individual, mas, a história da arte moderna em geral. HO assume, pois, a ampla tarefa de tradutor da tradição artística moderna, tanto no aspecto de homenagem quanto de crítica às poéticas das vanguardas históricas.

Contra a idéia de pureza exigida por certas correntes do modernismo, desde Lessing à Greenberg, recusa distinguir entre os meios convencionalmente atribuídos às chamadas artes do tempo (música, letras, teatro) e às artes do espaço (pintura, escultura, arquitetura, etc.) e/ou a diferenciá-los das matérias primas e objetos comuns. À mistura de meios e linguagens heterogêneos, deu o nome de “Programa Ambiental” e/ou “Programa em Progresso”, neles subentendida a participação do ato corporal que, por si só, sintetiza feixes de signos heterogêneos e ‘multisensações’ (visual, tátil, olfativa, gustativa, auditiva). Visto que o todo da linguagem é território de habitação comum, tais proposições/programas realizam-se somente enquanto construções interativas efetuadas em práticas corporais concretas - dito à maneira de Wittgenstein, na prática de “jogos de linguagem”.  Aspecto que invalida a idéia de obra autoral, redefinindo o papel do artista enquanto mero propositor de um lance singular no contexto de uma linguagem pública. O problema da arte e da criação converte-se, pois, em problema de invenção de linguagem, domínio coletivo onde se interceptam falas e leituras potencialmente inumeráveis.

Oiticica leva em conta que a linguagem não apenas situa os corpos dos falantes, mas os atravessa, pois, está sendo construída dentro e fora deles. Para o artista-propositor importa inventar uma linguagem comprometida com a prática de vida e seu contexto: ato que demanda a re-invenção conjunta dos territórios de habitação sedimentados e dos comportamentos usuais. Suas proposições/programas esperam ativar nos corpos um fluxo de sensações e conceitos, quer se apresentem enquanto objetos manipuláveis (objetos-Bólide); abrigos para vestir o corpo (Capa-Parangolé, Bólide-saco, etc.); recintos em dimensão arquitetônico-paisagística, servindo como ambientes habitáveis (pertencentes à categoria Penetráveis tais como Projeto Cães de Caça, Tendas e Cabines Parangolé, Tropicália, Éden, Ninhos, Cosmococas, etc); quer circunscrevam um mundo-texto erigido em cenário de ações experimentais, a exemplo de Mundo Abrigo, 1973, proposição de alcance existencial formulada por escrito. Quaisquer que sejam as sintaxes e os meios envolvidos, tais proposições/programas, na letra de HO, servem de “abrigo para o corpo físico e imaginário. Poemas precários, tais abrigos se oferecem como moradas improvisadas no percurso sem finalidade que caracteriza a experiência poética enquanto deriva da linguagem. Na poesia verbal, transtorno da ordem da sintaxe e deslocamento do uso comum das palavras, ganha ênfase o ‘corpo’ dos signos em sua dimensão gráfica e fonética e aptidão ao deslizamento do sentido.

A palavra mostra-se mesmo essencial ao Programa Ambiental de Oiticica. Aliás, seus experimentos ‘plásticos’ sempre tangenciaram a poesia verbal, tal como recomendava a fusão de linguagens subjacente ao Manifesto Neoconcreto (1959)- texto-programa que tratava, de uma só vez, de artes visuais, poesia e prosa - questão até hoje pouco explorada pela história & crítica de arte brasileira. A crer no depoimento de Ferreira Gullar, a efetiva perda de limites precisos entre linguagem verbal e visual teria motivado dissenso entre membros do grupo Neoconcreto, misto de artistas plásticos e poetas (GEISER & COCCHIARALLE, 2004: p. 98). Veja-se, p.ex., o Balé Neoconcreto (1958), de Lygia Pape e Reynaldo Jardim, dança de figuras geométricas ‘vestidas’ pelos corpos dos bailarinos; o Livro da Criação (1960) de Lygia Pape, objeto-livro sem palavras, cujas páginas convertidas em planos recortados e dobrados, ao serem folheadas, evocavam a gênese do mundo e as passagens de sua história; os poemas espaciais de Ferreira Gullar Ara, Pássaro, Não e Lembra (1959), onde a palavra se inscrevia em superfícies planas manipuláveis, e, em especial, seu Poema Enterrado (1959-60), esquematizado em projeto ambiental e instalado no porão da casa de Oiticica: o leitor-espectador acessava esse ‘espaço-poema’ ao descer uma escada e ‘performar’ os atos seguintes: dirigir-se a um conjunto de cubos de madeira pintados de cores diversas dispostos ali - o maior continha em seu interior outros menores-, e manipulá-los, descobrindo sob o menor de todos, a palavra oculta “Rejuvenesça”; os Bichos (1960) de Lygia Clark, propostas de esculturas-limite derivadas do plano virtual do quadro enfim convertido em plano concreto, funcionavam também como objetos interativos, revelando sua estrutura construtiva somente quando manipulados. Em qualquer caso, os experimentos hídridos neoconcretos dependiam de gestos do corpo.

A palavra está presente nas estruturas físicas da maioria dos inventos de Oiticica, sempre acompanhados por escritos. A prática de dar nomes-título às suas “experiências”, assim como de transformá-las em conceitos críticos e relatos textuais mostra-se inseparável da atividade inventiva do artista-propositor. A palavra ganha, contudo, crescente autonomia em escritos que, ele nomeou, ao final dos anos 1960, “meus textos poéticos” para diferenciá-los do teor de escritos anteriores, onde pretendeu desenvolver teorias aproximadas à filosofia (FIGUEIREDO, 1998: p. 43). Escreve contos curtos e poemas visuais, explorando o gestual da escrita e/ou o aspecto gráfico e sonoro das palavras, às vezes acompanhadas de desenhos. Em sua experimentação com a escrita suprime pontuação, inventa neologismo e ‘multidiomas’- leiam-se os títulos Escrerbuto, Agripina é Roma-Manhattan, BarnBylonia, etc. Nos anos 1970, durante sua estada em Nova Iorque, palavra e texto, tornam-se, respectivamente, objeto e lugar privilegiado de experimentação, em detrimento de proposições não-verbais. Sob o título Newyorquaises, escreve também em inglês fluente e intensifica o exercício de inventar nomes-conceito. Àquela altura, o texto sedia o relato de seu “dia-a-dia experimental”, além de exibir seu interesse pelas letras, desde o ensaio à poesia, incorporando leituras de Heidegger, Joyce, Nietzsche, Gertrude Stein, Marcuse, Ezra Pound, Cummings, Haroldo e Augusto de Campos, Sousândrade, Waly Salomão, etc. Planeja então organizar textos seus em livro enciclopédico que se chamaria Conglomerado - nunca publicado, porém, talvez em vista do teor necessariamente inacabado dessa escrita diária. O empenho em verbalizar sua experiência do cotidiano em estado de aceleração crescente resulta também nos Héliotapes: série de falas registradas em fitas k-7, ora em forma de ‘textos-carta’ endereçados a um ou mais interlocutores no Brasil, ora em diálogo direto com personagens que encontra em Manhattan. Diferente da escrita, o registro da fala improvisada preserva o ritmo e o grão da voz realçando a vocação performática da linguagem verbal.

Entre os muitos nomes-conceito inventados por Oiticica, o título Bólide (1962), associado a um objeto apropriado do tipo lata, saco, vidro, caixa, etc., e convertido em ‘estrutura construtiva’, aponta para o deslocamento intrínseco ao ato poético. Deslocamento que atualiza o gesto apropriação readymade proposto por Marcel Duchamp, envolvendo a atribuição de um nome-título a um objeto encontrado (objet trouvé). Gesto integrado a um procedimento performático denominado L’ Horlogisme (DUCHAMP, 1994: p 49) por seu inventor: consistia em agendar data e hora no relógio para garantir o encontro futuro com um objeto readymade a ser eleito como tal. O Objeto estaria presente em determinado ponto do tempo e em lugar indeterminado do espaço, onde o artista, casualmente, se encontrasse. Trata-se da encenação do gesto poético essencial: eis aqui uma coisa encontrada por recurso determinado/indeterminado, da qual me aproprio ao emprestar-lhe um nome arbitrado e/ou a conduzo do lugar comum ao regime sígnico diferenciado da arte/poesia - está implícito nesse transporte o movimento em direção oposta. Em entrevista a Pierre Cabanne, Duchamp esclarece o caráter poético-conceitual da manobra readymade quando declara “a arte hoje está mais a forma de signo” (CABANNE, 1997: p. 158) e atribui sua principal inspiração ao poema Lance de Dados (1897) de Stéphane Mallarmé. Poema emblemático do experimentalismo moderno nas letras, sua estrutura circular, sem começo, meio ou fim, tanto realça a presença gráfica da palavra no espaço da página e a sonoridade de sua leitura quanto, como diria Otávio Paz, a “rotatividade dos signos” (PAZ, 1998: p. 112-115). Apresentado por Mallarmé como “poema-constelação”, o Lance de Dados constrói um arranjo móvel de “blocos de palavras-coisas” sobre o vazio da página, de uma só vez, casual e controlado, similar ao movimento de grupos de estrelas no céu noturno (CAMPOS H & A, 2006, anexo). Ainda segundo Paz, o Lance - primeiro poema crítico-, denunciava o jogo da poesia ao apontar para o deslizamento das palavras, ora de acordo com a mútua aproximação e fuga entre seus significados e significantes, ora segundo a mudança de posição e sentido das  palavras-signos em diferentes percursos de leitura.

Bólide nomeava também a cor corporificada em pigmentos sólidos e objetos encontrados, concentrando intensa luminosidade. Luz própria que se encarregava de revelar seu parentesco com os experimentos “anti-retinianos” de Duchamp e com o poema crítico Lance de Dados, para além do aspecto visual do objeto nomeado. Bólide sugere, inclusive, o trânsito do sentido da proposição e a dinâmica da estrutura relativa ao espaço plástico. Metaforiza, pois, um movimento intrínseco dividindo o espaço em posições relativas e o sentido em série de oposições significativas: dentro-fora, aberto-fechado, exterior-interior, continente-conteúdo, cheio-vazio, etc. Ao incorporar palavras às suas estruturas, HO chamava Bólides também por “caixas-poema” - ver a Caixa Bólide 18 /Bólide-Homenagem à Cara de Cavalo (1966), contendo a foto do bandido morto e a frase inscrita em letras escuras sobre um saco transparente, contendo pigmento de cor vermelha: “contemplai seu silencio heróico/ aqui está e aqui ficará”.  Monumento portátil, a Caixa 18 investia-se da dupla função simbólica de túmulo e altar da condição marginal comum ao bandido e ao artista moderno, condição à qual HO aspirava enquanto experimentador. A marginalidade do artista moderno era reconhecida por Charles Baudelaire e, efetivamente, compartilhada por Rimbaud, Gauguin, Van Gogh, Artaud, além de tantos outros anti-heróis que, por assim dizer, apadrinham a trajetória poético-existencial de Oiticica

Também presumível seria o traço comum entre os poemas visuais de Augusto de Campos, os experimentos-plásticos contendo palavras de Waldemar Cordeiro, exibidos em conjunto na mostra Popcreto (1962) e os Objetos-Bólide portadores de poemas verbais. Embora tantas vezes identificado como um dos expoentes do Neoconcretismo, Oiticica manteve diálogo com a plástica ‘pop-concreta’ de Cordeiro e, em especial, com a poesia concreta de Haroldo e Augusto de Campos. Acompanhada por sua teoria crítica, a poesia concreta paulista inspira e avaliza, entre outros aspectos, a maneira de Oiticica conceber a linguagem como “estrutura-espácio-temporal” (CAMPOS & PIGNATARI, 1975: p. 56), presumida sua vocação construtiva. De fato, sua poética Ambiental investiu na fusão entre meios, linguagens e tendências artísticas modernas brasileiras e internacionais, inclusive entre aqueles programas construtivos tidos como díspares, tais como Concretismo e Neoconcretismo brasileiros. Enquanto artista-experimentador, HO tem perfeita noção do caráter coletivo da linguagem-poesia e sabe bem que a invenção poética se faz sobre o solo da tradição comum, seja herdada e/ou adquirida por apropriação.

A proposição Núcleo (1960-61) - uma das primeiras experiências de transposição da cor ao espaço ambiente realizadas por Oiticica -, nomeia uma estrutura-labirinto aranjada a partir de planos sólidos de cor única em tonalidade vibrante (amarelo, laranja, vermelho) e suspensa no ar. O espectador é convidado a percorrê-la não apenas com o olhar, mas com todo corpo, vivenciando, segundo HO, seu duplo caráter “arquitetônico” e “musical” ( FIGUEIREDO, 1986: p. 23). As linguagens da música e da arquitetura têm em comum sua concepção estrutural, seja ela construída, efetivamente, a partir do jogo de relações entre planos de cor ou entre tons audíveis: nos dois casos, uma divisão rítmica se impõe ao espaço e ao tempo. Vale lembrar que o sentido musical da estrutura, alusivo ao seu caráter rítmico ou relacional, foi amplamente acolhido pelas chamadas tendências construtivas nas artes visuais, compreendendo desde o Neoplasticismo de Piet Mondrian e Moholy-Nagy, o Suprematismo de Malevich até o Construtivismo russo propriamente dito, formulado por Gabo e Pevsner. Entretanto, Oiticica separa a razão construtiva de seus aspectos formais e assim a reconhece em poéticas visuais não geométricas, como, p.ex., a de Kandinsky, Klee, Matisse, Klein, Pollock, Rothko, Rauschemberg, De Kooning, etc.

Antecipando a lógica construtiva ou estrutural, o pintor Mondrian elaborou, em seus quadros e escritos, a noção de estrutura sintetizada por duas linhas ortogonais. Conceito base da Nova Plástica, a estrutura neutralizava a idéia tradicional de forma plástica implicada com a morfologia natural. Imagem síntese do espaço plano do quadro e da polaridade que rege o significado na linguagem, a ortogonal aciona uma dinâmica expansiva. Por analogia com a música harmônica, estabelece um ritmo constante que indefinidamente se propaga no espaço do quadro, como que promovendo a quebra de sua moldura. A síntese estrutural - profetizou o pintor holandês-, anuncia o nascimento de uma plástica futura capaz de admitir a permeabilidade entre pintura, arquitetura, design e urbanismo, a qual deu o nome de “Ambiental”. O advento dessa arte ampliada promoveria uma nova ordem urbana e comportamental regulada pelo equilíbrio harmônico conquistado através da arte. Suposição que orienta os vários projetos construtivos vanguardistas que visam reorganizar o ambiente urbano e as práticas sociais a partir de parâmetros estéticos.

Experiências pós-quadro, os Núcleos de Oiticica esperam cumprir, ao menos em certa medida, a profecia de Mondrian, porém, sem aspirar ao equilíbrio. Ao surgirem como desdobramentos no espaço ambiente de problemas estruturais de pintura (“cor-luz-espaço-tempo”) já prenunciam o conceito futuro que irá presidir os Objetos-Bólide. Núcleos e Bólides, por sua vez, derivam em Penetráveis, Parangolés, Ninhos, Cosmococas, textos críticos e poéticos, etc. Não por acaso, o nome-título ‘núcleo’ evoca a substância ativa de uma célula naturalmente programada para se dividir e multiplicar. Bem de acordo com a metáfora da divisão e crescimento celular, na poética propositiva de Oiticica o “problema da cor” desdobra-se, progressivamente, em outras n proposições futuras, mantida sua qualidade primeira de poesia. 

Primeira proposição dita comportamental-vivencial-corpórea, o ambiente Parangolé (1964-66), se apresenta textualmente como “estrutura transformável-cinética”: acolhe o estar das coisas inanimadas (Tendas, Capas, e Estandartes presentes na ambientação) e a dinâmica física e qualitativa dos corpos animados pela dança. Em sua obvia implicação com a música, a dança leva os corpos a experimentar outras gestualidades e modos de relação com o tempo-espaço, sintetizando, nos termos de HO a “contínua transformabilidade do ato corporal (FIGUEIREDO, 1986: p. 75). Daí a afinidade entre dança, poesia verbal e visual e performance teatral. Espetáculo improvisado em cena aberta, Parangolé prevê a alternância ritmada entre a posição estática de assistir a dança e a mobilidade experimentada no ato de vestir a capa, segurar o Estandarte e dançar; entre a posição do ator na cena e a do espectador situado fora dela. E mais: convida a posicionar-se no ambiente do espetáculo, seja como ator, seja como espectador, e/ou a retirar-se dele, permanecendo oculto no interior da Tenda. Acolhe, pois, um fluxo ritmado de imagens do corpo, em trânsito entre movimento e repouso, atitude ativa e contemplativa, exposição e recolhimento. 

Carregar um estandarte-poema é como conduzir a alegoria da palavra atravessando o ar. Vestir uma capa-poema é possibilidade de vestir e movimentar a palavra, material entre outros materiais pobres usados na confecção desses mantos: peças de tecido barato, algodão bruto, esteira, estopa, fotografias e letras-tipo pintadas e/ou serigrafadas que escrevem frases do tipo: “Da Adversidade Vivemos” (1964); “Capa da Liberdade” (1966); “Guevaluta Baby”;“Incorporo a Revolta”, Seja marginal, Seja Herói” (1967); etc. Para Oiticica, esse arranjo improvisado de imagens-palavras e materiais precários resulta em “poemas protesto”. Sobra espaço, contudo, para uma erótica verbal: “Sexo e violência, é isso que me agrada” ( 1965); “Da tua pele brota a umidade da terra, do teu gosto o calor”(1967); “Do meu sangue, do meu suor esse amor viverá”( 1965). Mistura de coisa e símbolo, a palavra se usa como vestimenta/abrigo do corpo , capaz de investi-lo em poema - vale o mesmo para o uso das Capas, Estandartes e Tendas.

Quanto à palavra Parangolé - gíria carioca da época - significava nada e quase tudo, e, principalmente, uma coisa que não devia ser nomeada: a cannabis sativa, por si só, capaz de transformar a percepção e a consciência. Oiticica esclarece que essa palavra-enigma pode ser lida como espécie variante de Merz/Merzbau, conceito poético operativo proposto pelo dadaísta alemão Kurt Schwitters, por volta dos anos 1920, enquanto versão sua do Dadá. Merz designava o conceito e o método da colagem, atuando por apropriação e justaposição de coisas e materiais encontrados no lixo das ruas de Hannover, cidade semidestruída nessa época de pós-guerra - em especial, restos de jornais, revistas, papel de propaganda e refugos de material tipográfico. Transposição da linguagem fragmentária da colagem à escala arquitetônica, Merzbau referia-se à casa-Obra edificada no percurso da vida do artista: abrigo em construção permanente via apropriação e amálgama de fragmentos encontrados. Conceito abstrato, Merz/Merzbau aplicava-se, indiferentemente, a toda e qualquer linguagem artística: pintura, desenho, gravura, arquitetura, poema, teatro, música e, sobretudo, prestava-se a misturá-las entre si. Desde logo, expunha o funcionamento do signo, capaz de efetuar a mútua transposição entre detrito e arte, letra tipográfica e poema, ruído e música, etc. Atuava igualmente como método re-organizador da cidade, em última instância, do mundo, a ser reordenado espacialmente e re-significado, a partir do artifício da colagem, em mundo-arte.

Schwitters ‘escrevia’ desenhos/poemas a partir da justaposição de fragmentos de textos e desenhos impressos encontrados, e foi propositor do polêmico poema-cartaz Anna Blüme (1919) - “Anna, teu nome pinga como gordura” -, que afixado em postes e muros se tornava parte da paisagem urbana de Hannover, tal como as Capas e Estandartes, poemas-objetos portáveis de HO, quando ocupavam os jardins do parque do Aterro, no Rio de Janeiro dos anos 1960. Em sua ação totalizante de “escrita do mundo”, Merz/Merzbau recomendava a apropriação de outras poéticas históricas, inclusive da lógica estrutural construtivista, auto denominando-se, em tom de paródia, por “Meustruvismo” e/ou “Monstruvismo” - aqui o emprego recorrente da letra “M” homenageava os mestres construtivos Moholy, Mondrian e Malevich (SCHWITTERS, 1994: p 211).

Mirando-se em Merz, Parangolé circunscreve uma operação de linguagem ‘dadá-construtivista’, aparentada ao método de apropriação e colagem de ‘fragmentos’ encontrados, extensivo à ‘escrita’ dos espaços da cidade e do mundo. Porém, difere tanto do modelo da casa-Obra Merzbau quanto do modelo arquitetônico e urbanístico nascido da estrutura neoplástica de Mondrian, justamente por negar o paradigma estético e o regime exclusivo da arte. Ambos, por excelência, modelos utópicos, visavam converter os modos de habitação correntes ao gesto artístico e à razão estética. Quanto ao Parangolé, se pode ser lido enquanto apropriação inventiva da estrutura da escola de samba típica da favela carioca, não diz respeito ao território empírico e a matriz sócio-cultural local ou à arte, mas a um conceito poético de alcance ético e político. Contra o risco de reviver o folclore, dispensa o vínculo com a “raíz brasileira”, expressão de Oiticica significando tudo que ele deseja evitar: a fixação à terra, a remissão a uma origem determinada. Parangolé realça o potencial inventivo que uma ordem precária pode conter e o alcance indeterminado do gesto de improviso “a partir do que se tem à mão”. Apesar do resgate que faz das poéticas modernas citadas, seu foco na circunstância o distingue da utopia empenhada em transformar o cenário e os hábitos do cotidiano a partir do modelo estético da arte tido por universal. Seu horizonte utópico reside sim na tentativa de escapar do regime simbólico e institucional da arte, embora, paradoxalmente, se deixasse nele permanecer em atitude crítica. De todo modo, Parangolé forjava uma estética outra, de uma só vez, sensorialista e conceitual, afeita a singularidade e ao transitório.

O problema relativo à “raíz” cultural era abordado em texto e no Penetrável Tropicália (1967), erigido em emblema da operação antropofágica em escala ambiental. A instalação, montada no MAM-Rio, reunia, à maneira da colagem dadá, um conjunto de elementos díspares: “a estrutura geométrica fixa (que lembra as mondrianescas casas japonesas)”; “a imagem da TV”; “uma espécie de cena tropical com plantas, araras, areia, pedras, seixos, brita”, “poemas-objeto dentro das folhagens” (FIGUEIREDO, 1986, página sem número). Diga-se de passagem, colagem dadá e antropofagia compartilham o mesmo método operativo e conceito de linguagem. Paisagem construída a partir do recorte e amálgama de elementos heterogêneos, a Tropicália, segundo HO, confrontava-se à imagética internacional da Pop e Op Art, dominante na época. Para tanto, aliava o exercício crítico com respeito às imagens recorrentes da cultura brasileira e do imaginário midiático ao convite de retorno à sensação primeira ainda por ser significada (“de novo pisando de novo na terra”). Abolindo a primazia da imagem visual, reforçava o sentido primário do tato, sem deixar de indicar a contaminação mútua entre imagens táteis, visuais e significados, entre linguagem local e estrangeira. A pele - órgão do tato - define o limite entre corpo e espaço ambiente, atuando como superfície de separação e contato entre ambos. Roupa, casa, paisagem e palavra, sempre extensões do espaço do corpo, aparecem na poética Ambiental como sucedâneos da pele.

Em seu arranjo de tendas e outros espaços de aninhamento para o corpo, instalado junto a areia, folhagens e pássaros vivos, o ambiente-Tropicália parece fazer referência ao relato sobre uma aldeia indígena brasileira escrito por Levi-Strauss em Tristes Tropiques. Transcrito por Oiticica em seus papéis, o texto de Strauss descreve o mútuo contágio entre a floresta e as cabanas indígenas feitas de galhos e plumagens, essas habitações ‘quase vivas’, a um só tempo, servindo de abrigo e adorno aos corpos e sendo adornadas por eles. Faz crer que entre os corpos e os espaços em seu torno não haveria completa separação: “A aldeia [...] conserva um pouco da vida dos galhos e folhagens. A nudez dos habitantes parece protegida pelo veludo herbáreo das paredes [...] Os corpos, jóias desses estojos” (FIGUEIREDO, 1986: p. sem numero). Também a aldeia Tropicália quer servir de ‘vestimenta-abrigo’ aos corpos, mantendo com eles contato direto, mais que visual, como que os assimilando a sua estrutura. Daí que esse ambiente, espécie de labirinto fechado, possa ser experimentado como um organismo devorador- segundo Oiticica, como um grande animal. Apelando à antropofagia, Tropicália faz paródia do olhar estrangeiro sobre o trópico Brasil e agrega elementos locais e alienígenas, resultando, na palavra de HO, em “salada multimídia sem muito sentido” (OITICICA, 1996: p. 62) e sem apego à raiz brasileira.

O jogo sem regras de apropriação e mistura de elementos avulsos, linguagens heterogêneas e poéticas alheias, característica mais evidente da poética de Oiticica, pode ser associada à operação antropofágica prescrita pelo modernista Oswald de Andrade.  Oiticica pretendeu potenciá-la em “Superantropofagia”, a partir da critica ao programa original de Oswald, que reconhecia o caráter nacional originário e/ou a intrínseca falta de caráter demonstrada por seu personagem literário Macunaíma. Oswald foi, entretanto, leitor de Nietzsche, e, talvez, inspirado pela frase do filósofo-artista Zaratustra: “o espírito é um estomago”, assimilava a antropofagia a um tipo de pensamento sediado no corpo e movido por seu apetite e capacidade de digestão (NUNES, 1979: p. 46). Conectado às flutuações do sentimento e dos cinco sentidos, esse pensamento sensível mostra-se um incapaz de fixar ponto de vista ou sentido definitivo. Trata-se de um pensamento performático, implicado com as circunstâncias de seu percurso. Idéia de sabor nietzschiano apropriada por Oiticica, para quem a tarefa que cabe ao poeta/artista/experimentador é, fundamentalmente, performática: “NÃO PRÉ-FORM: PERFOM”, (OITICICA, 1996: p. 132), ele escreveu. Ao convocar o ato poético em si mesmo, seus programas/proposições nunca visam  à formulação de sintaxes definitivas. Daí seu alcance crítico ou experimental. 

Cosmococa / Programa in Progress (1972-73), proposição-texto escrita por HO em Nova York, em língua inglesa e portuguesa - montada como ambiente-instalação para exibição pública somente em data recente, posterior à morte do artista-, pratica a Superantropofagia enquanto operação de linguagem e política comportamental. Para tanto, empreende a síntese crítica de todas as suas proposições anteriores e afirma o jogo-brincadeira (“Jogo-Play”) contra a arte séria, permitindo-se utilizar enquanto ‘meio’ imagens em foto-slide da matéria Branca da cocaína. Meio transgressivo, inserido em um jogo paródico que, no espaço do texto, em série progressiva de associações, alude ao branco da página que integra a estrutura do poema Lance de Dados de Mallarmé; ao conceito do Suprematismo Branco formulado por Kasimir Malevich em seus escritos e no quadro Branco sobre Branco (1918); ao branco da folha avulsa que funciona como suporte concreto do poema gráfico dias-dias-dias (1953) de Augusto de Campos; ao silêncio convocado pela anti-música de John Cage - além de sugerir outras n associações possíveis (OITICICA, 2005: p. 224). A cor branca mobiliza uma estrutura paródica cuja significação é alusiva às figuras do Vazio recorrentes em tantas proposições do experimentalismo moderno e contemporâneo. Negativa da forma e do lugar, o Nada que tais figuras evocam instaura a condição necessária ao ato poético: a ausência capaz de abrigar novas presenças.

Cosmococa reafirma a poesia Ambiental enquanto jogo paródico com as linguagens artísticas canônicas e as poéticas históricas. Agora recorre, de maneira crítica, ao conceito operativo de montagem cinematográfica proposto por Eisenstein e intitula-se também por Quase-Cinema. Para Eisenstein, a montagem define-se por duas vias: ora segundo o modelo da escrita ideogrâmica, linguagem imagética procedendo pela “cópula ou combinação de dois hieróglifos”, ou seja, dois signos gráficos; ora de acordo com o fenômeno biológico de colisão e fusão entre duas “células”. Ambos os modelos aplicavam-se ao procedimento de colagem-montagem entre dois ‘planos’ do filme, resultando na ‘célula-ovo’ ou conceito operativo do cinema (EISENSTEIN, 1990: p. 36). A ‘célula ovo’ da montagem desencadearia um programa automático, proliferando na complexidade móvel da linguagem filme - aqui conceito, técnica e fusão orgânica entre células se superpõem por analogia.

Guiada pela lógica progressiva comum à escrita por imagens, ao cinema e ao desenvolvimento celular, Cosmococa se autodefine também como “ambiente fragmentado” ou “mosaico”. Em outro aspecto, testemunha o atual universo de referências de Oiticica, que incorpora as experiências intelectuais, musicais, artísticas e literárias que ambiente novaiorquino lhe apresenta: a experimental music de John Cage; o cinema experimental de Jack Smith e Andy Warhol; os ensaios sobre cultura de Norman Brown e McLuhan, as performances do Fluxus; a escrita de Gertrude Stein; o rock and roll dos Rollings Stones e Jimi Hendrix (a dança rock então lhe parece mais democrática que o samba por admitir uma gestualidade improvisada); etc. A maneira de uma ‘cosmospoesia’, esses elementos novos se somam a seus ícones mais antigos: Malevich, Mondrian, Schwitters, Mallarmé, Oswald, Nietzsche, Breton, os irmãos Campos, etc., resultando em novo arranjo, diferente dos anteriores. Inspirado pela leitura de McLuhan, teórico da cultura midiática, HO escreveu sobre as possibilidades abertas da poesia de acordo com sua visão otimista do fenômeno da globalização que a época oferece à experiência coletiva e individual: 

COSMOCOCAS: NOME-MUNDO: propôs não um ponto de vista, mas um programa de invenção-mundo [...] Cosmococa ou a CONTIGUIDADE DOS NIVEIS MUNDO EXPERIMENTAIS: COSMOCOCA é o joke-jogo supremo no qual se joga com a simultaneidade e com a contigüidade da multidão de possibilidades da experiência individual/ que germina nas coletividades da aldeia global de MCLUHAN (OITICICA, 1996: p 180-181)

Contemporânea à Cosmoca, Mundo Abrigo (1973) é proposição em forma de texto, sugerindo um ambiente aberto à experimentação do comportamento a que Hélio chamou playground: literalmente, campo de atividades coletivas de jogo e brinquedo sem outra finalidade senão a prática experimental em si mesma.  Capaz de sediar acontecimentos poéticos em qualquer escala ou modalidade de linguagem, Mundo Abrigo pretendia ser o mais abrangente dos programas ambientais. Nada propunha: nenhum objeto ou procedimento previsto, nenhuma instalação. Seu alcance propositivo convidava a inventar maneiras outras de existir: “mais do que um refúgio é procura de chance de experimentar existencialmente / ocupação de viver: o environement que é cósmico/ isto é, multitransformável, não naturalista” (OITICICA, www.itaucultural.org, p.2), escreveu HO.  A proposta, dirigida ao corpo, pretendia motivá-lo a construir territórios de habitação improvisados e a si próprio enquanto bio-arquitetura em processo. Ainda que integrada a circuitos de atividades coletivas, abrangendo, em última instância, a dinâmica do cosmo, essa tarefa de construção seria individual e puramente circunstancial. Pois, apenas por sua singularidade o acontecimento poético integra-se à totalidade aberta Ambiental e, em sentido inverso e simultâneo, essa totalidade manifesta-se somente no ato poético singular.

O nome-conceito Abrigo circunscreve projeta construir “probbjetos” (objetos-proposição e /ou objetos-problema) e “pobrecintos” (recintos-proposição) como abrigos às sensações e significados nômades. A poesia performática veiculada por Oiticica aplica-se em oferecer objetos e lugares-proposição, postos à margem dos terrenos sedimentados pelos comportamentos e linguagens estabelecidos. E, sobretudo, em sugerir ao outro a possibilidade de invenção de si por um ato de ocupação territorial. “Habitar um recinto é mais do que estar nele, é crescer com ele, dar significado à casca-ovo”, disse HO (FIGUEIREDO, 1986: P. 120). Assim indicava que a experiência de habitar um lugar doa sentido poético, portanto, circunstancial, a exemplo da casca-ovo, pronta a ser rompida. Todo espaço de acolhimento da poesia estaria, pois, já destinado a um ato de deserção - se igual à dinâmica do cosmo, poesia é deriva.


Referências

BRETON, André. Manisfestes du Surréalisme. Paris, 1979.

CABANNE, Pierre. Marcel Duchamp: engenheiro do tempo perdido. São Paulo: Perspectiva, 1977.

CAMPOS & PIGNATARI. Teoria da Poesia Concreta. São Paulo: Duas Cidades, 1975.

__________________. Mallarmé. São Paulo: Perspectiva, 2006.

DUCHAMP, Marcel. Du Champ Du Signe. Paris: Flammarion, 1994.

EISENSTEIN, Sergei. A Forma do Filme. Rio de Janeiro: Zahar, 1990.

FAVARETTO, Celso. A Invenção de Hélio Oiticica. São Paulo: EDUSP, 1992.

FIGUEIREDO, Luciano (org.). Aspiro ao Grande Labirinto: Helio Oiticica. Rio de Janeiro: Rocco, 1986.

______________________ Cartas 1900-1990: Lygia Clark & Hélio Oiticica. Rio de Janeiro, Ed UFRJ, 1998.

GEIGER, A & COCCHIARALLE, F. Abstracionismo Geométrico e Informal: a vanguarda brasileira nos anos 1950. Rio de Janeiro: Funarte, 2004.

NUNES, Benedito. Oswald Canibal. São Paulo: Perspectiva, 1979.

PAZ, Otávio. Signos em Rotação. São Paulo: Perspectiva, 1996.

WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. São Paulo: Nova Cultural, 2000.

Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: Centro de Arte HO, 1997.

Cosmococas Program in Progress: Neville D’Almeida & Hélio Oiticica. Programa HO, MALBA, CACI, 2005.

Kurt Schwitters. Paris: Centre George Pompidou, 1994.

www.itaucultural.org. Programa Hélio Oiticica

PATRÍCIA DIAS GUIMARÃES é Doutora em História Social da Cultura (área de pesquisa: história da arte) pela PUC-Rio com a tese: “Romantismos, vanguardas e a poesia progressiva de Hélio Oiticica”(2008); Mestre na mesma área de estudos e instituição c/dissertação intitulada “A Pop Art Americana e a tradição moderna na pintura”(2002).

PATRÍCIA DIAS GUIMARÃES is Philosophy Doctor in Culture Social History (research area: Art History) at Pontificia Universidade Catolica at Rio de Janeiro with the thesis: "Romantisms,vanguards and the progressive poetry of Helio Oiticica" (2008); Master in the same research area and institution with dissertation entitled:"The American Pop Art and modern tradition in painting" (2002).