LK– Olá Amir, aqui estamos mais uma vez,
conversando sobre um tema que nos é tão caro, a cidade e o teatro. Começo
perguntando se você acha que, nos dias de hoje, o teatro ainda representa a cidade
ou seria o inverso?
AMIR -
Eu acho que o que vai ficando cada vez mais evidente nesse novo milênio, nesse
final de civilização que a gente está vivendo é que o teatro e a cidade, vamos
dizer, são uma coisa única. Eles não se separam. Entende?
Então, a cidade é teatral. Ela pode ter consciência
disso ou não ter. Então, nossa sociedade, capitalista e protestante, isolou o
teatro num recanto, não é? E ficou lá. Esse século todo foi sendo discutido,
discutido e a gente acabou tirando o teatro desse isolamento e botando ele em
outros lugares, nas praças, nas ruas, na rua... Mas, o que eu sinto, e o que
vem avançando, é que a idéia de que a própria cidade é o teatro. A
etnocenologia, já encontra este sentido. Estuda a teatralidade das
manifestações culturais e étnicas além da antropologia: é a cena do
acontecimento, como é contada... Estuda como que as mulheres da Bahia vendem o
acarajé. Qual é a encenação proposta, há sempre uma encenação. Então, você vai
além da antropologia, vai no fundo. É claro que você passa pelos ritos, por
tudo isso. Mas tenta revelar um pensamento moderno, tenta revelar uma
teatralidade da cidade. E tenta construir uma questão: pode-se ignorar essa
teatralidade? Uma cidade pode viver sem essa teatralidade? Pode viver sem um
teatro que a represente?
Essa possibilidade imanente da cidade pode ficar
sem se manifestar?
Quando ela não se manifesta, como podemos
considerar o caminho do ser humano?
Ou se essa manifestação é essencial para cidade
crescer, a cidade pode viver sem o seu coração?
O teatro pode ser o coração da cidade? Então, não é
mais um espetáculo sendo feito na rua, ou um espetáculo fechado representando a
cidade…
No teatro grego,
eles tinham sôbre o palco as colunas que representavam o palácio da cidade. A
cenografia era isso. Mas, o espetáculo é duplo. É a platéia inteira. Então a polis está representada ali. Ali é a polis.
LK – A cenografia como signo da cidade e
da idéia de um cidadão em construção é parte dos códigos de representação da
cena seminal, na Grécia, não é? Com Sófocles aparece o cenário que representa a
cidade, sublinhando o fato político.
No teatro clássico, tragédia e comédia, a cidade também é o tema da cenografia.
Ao caminhar ao longo do tempo, verificamos a presença da cidade, como signo,
assumindo diversas formas nos espaços cênicos. A imagem da cidade aparece na cena como algo que não está na
própria cidade, ou uma projeção do que poderia ou deveria ser. Seria uma
cidadania perdida ou desejada, ou uma busca de outras que só a cena teatral
pode nos dar ?
AMIR - É interessante
isso. Enquanto você fala... começam a vir imagens de gravuras de teatro... as
peças de Molière, fazendo o ‘Doente Imaginário’. Ele sentado naquela
cadeirinha, onde ele morreu até.
Sentado naquela cadeirinha, no meio do palco representando o mundo, em
volta, ali, que eram os nobres, a aristocracia, aquela platéia enorme, alguns
até dentro do palco... e atrás , o
cenário dele, não é interior da casa dele: são perspectivas da cidade.
Perspectivas do exterior. Então, o teatro não é ilusionista. Ele é a cidade.
Então, quando Molière encena, atrás tem aqueles arcos, aquelas perspectivas, é
a vida da cidade que está presente.
O que eu acho... é isso aí. É que o teatro que traz
o mundo para dentro dele. Eu acho que o teatro é visceralmente da cidade.
Quando ele levado para lá, para o interior, fechado, é porque se sabe que o
teatro é uma manifestação da cidade, que é o lugar natural do teatro. Então,
não é que se queira fazer uma representação da cidade. É que para fazer uma
representação do teatro, ele precisa ter, acima de tudo, o ator representando
na cidade. Como na polis grega,
também. Como no espaço elisabetano, que é o mundo. Como da Idade Média. Então,
surge essa recuperação do sentido político. Nós chamamos de político, porque é
da polis. Esse sentido político do
teatro é uma recuperação que vem se fazendo agora, nesse novo milênio. E é
naturalmente uma reflexão, a partir da apropriação que a burguesia fez e
colocou o teatro dentro do espaço fechado, a ponto dele perder contato com a
cidade. E começar a representar nos espaços da ilusão.
Então, é quando se recupera essa possibilidade, pra
além do pragmatismo protestante, que tira o brilho dos tempos, tira a força dos
rituais. É objetivo, é claro. É você recuperar o teatro que seja o mundo e não
parcela do mundo, entende? Então, você vai recuperar esse sentido maior, que o
teatro tem.
LK - Amir, nesse mundo como você chama,
capitalista-protestante, que espetaculariza tudo, o espírito da feira medieval,
a cidade viva e grotesca se torna asséptica e penetra os shoppings. E mesmo
dentro de um shopping, naquela confusão tão limpa e cheirosa, vemos o grotesco
da feira travestida de assepsia. De que modo você compreende este tipo de
espetáculo?
AMIR – Isso, o teatro está
em todos os lugares. A sociedade capitalista privatiza. Ela privatiza e
especializa. Então, ela cria nichos: “Aqui é um shopping assim – a feira
privatizada.” Aqui é o nicho. Aqui é a especialização. Aqui é isso. Aqui é
aquilo. Privatiza e especializa. Então, cria esses nichos. Quando se abandona a
idéia da privatização e da especialização; e você começa a tornar as coisas
públicas, aí esse teatro, que está nesses nichos, ele começa a aparecer na vida
da cidade de outros modos. Uma
possibilidade da vida da cidade. E, quando você chega até a população da
cidade, a população da cidade imediatamente reconhece e cresce de cidadania.
Então, o teatro volta a ter uma função social. É uma coisa que a natureza botou
na gente, que nos ajuda a crescer. E isso, transformado em mercadoria, e
transformado em coisa privada e especializada, existe fortemente como coisa a
ser consumida, mas necessariamente, não produz o efeito positivo sobre a
cidade. E aí, se pergunta: “A cidade pode viver sem isso? A gente pode montar
um espetáculo no Centro Cultural Banco do Brasil e isolar lá?” Entende? Como é
que a gente faz para ser da cidade? Não ser de um grupo, naquele momento?
Porque a cidade precisa disso. O cidadão precisa disso.
LK – Sendo o teatro, ou a
teatralidade uma necessidade humana, irreversível, e como vimos, de caráter
urbano, o cidadão contemporâneo não estaria sendo atendida em sua necessidades
por essas outras formas, vamos chamar de parateatrais produzidas pelo consumo?
AMIR - Eu acho que não. Elas são manifestações
disso, mas não atendem a cidade como um todo. Atende aos guetos de uma certa
maneira. E, às vezes, nem tem essa ambição, nem acha que isso está no ser
humano. Acha que está sempre no artista. Isso daí pressupõe uma separação, que
é mais uma coisa também da privatização e da especialização: “Isso está em mim,
que sou o artista, e não está nele, que assiste”…
LK – E como você vê o público todo quando através
da televisão, cria uma janela com o mundo, satisfaz a sua “vontade de teatro”…
AMIR - Eu sei, eu estou entendendo, mas você não
pode ser sujeito passivo. Entende? Então, quando a polis inteira se manifesta, cada cidadão, mesmo vendo, está
existindo, está se exercendo, mas existindo. São naturezas de espetáculo
distintas. A gente conhece as manifestações que massificam o indivíduo. No show
de rock, é um comportamento só! Entende? Está ali. Agora, o teatro em que eu
acredito tem a possibilidade de fazer a polis
e o indivíduo estar ali inteiro. Como o carnaval tem. A individualidade não
desaparece nas cem mil pessoas que ficam assistindo ali [.....] Qualquer ator,
o que é interessante e interessado, vai adorar isso. Mas, onde estão esses
atores? Eles são vaidosos, eles são estruturados, são fechados… Eles montam
aquilo e ficam repetindo aquilo, têm pouco contato com a platéia. Não sabem se
relacionar. Não há horizontalidade no jogo. O ego é muito mais forte. O poder é
mais forte que o saber. Então, não tem esse TESÃO, entende? Então, a
verticalidade é muito grande. E a idéia de que você pode se salvar sozinho.
Então, é a sua verticalidade que importa. E eu entendo esse processo, porque eu
também convivi com isso... A horizontalidade é que me dá possibilidade. Se não
houver encontro aqui de nós dois, e nós dois subirmos, ninguém subirá. Então, é
necessário essa ponte, pra gente subir. Verticalidade nasce do encontro.
Quando toda a cidade inteira vai pra rua, se
encontra com aquele grande espetáculo que eu estou fazendo. A cidade inteira se
salva. Ou nos salvamos todos ou ninguém se salva. Não existe salvação
individual. Então, são esses princípios que estão ali. Então, você precisa ter
um ator também que seja capaz de enfrentar o jogo da vida. Você já tem a
coragem de chegar lá, desarmado, entrar em contato, e ir fazendo sua construção
inteligentemente a partir do contato com o público. Que é diferente de você
preparar uma receita, trazer ela pronta e falar: “Toma, toma, toma, toma!”
Coloca o pobre do público como paciente. Paciente é aquele que suporta, que
recebe. Então, você transforma o espectador em um paciente. Você não transforma
num colega seu, que vai também proceder junto com você. Então a relação que se
estabelece é totalmente diferente. Então, a questão ética e a questão estética
caminham juntinhas. Quando você não consegue quebrar essa questão ética através
de uma nova estética, você fica a propor uma estética e a ética que está na
cabeça do espectador é esse capitalista-protestante: “Farinha pouca, meu pirão
primeiro…” Você tá entendendo? Então, a ética da objetividade, da prosperidade,
do que eu tenho direito, da individualidade. Tirar da aristocracia e botar na
mão do cidadão. Mas, não pode ficar na mão da burguesia. Então, isso aí é um
avanço nesse sentido. É uma questão política profunda. Eu, quando vou trabalhar
com ator, eu tento remover, tento quebrar essa couraça ideológica, que está sob
o sentimento dele. Ele não é assim. Ele não pode achar que a ideologia é o ser
humano. É o ser humano nesse momento, mas a ideologia esconde muitas coisas,
muita... É uma porção de gestos, que eu não faço que, ideologicamente, eu sou
conformado. Então, meu gesto, meu gesto amplo, ele fica reduzido. Não posso
fazer... Então, você tem que
romper com esses conteúdos todos, para fazer a verdadeira pessoa aparecer. O
ser humano ir aparecendo na sua totalidade. Então, é uma remoção dessa couraça.
O Reich fala um pouco também dessas coisas. E tem um momento em que o Reich,
ele me dizia mais coisa do Grotowsky do que o Brecht. Porque ele me revelava a
possibilidade de você emergir de dentro da couraça. Só que a couraça, ao invés
de ser só minha história pessoal, minha relação com o pai, com a mãe, aquele
negócio todo, é minha história política, também.
Então, essa questão do ator e do não acabamento do
espetáculo, é uma questão estética e ética. E o ator que corre atrás do
resultado, que é da sociedade capitalista. E o ator que é capaz de se entregar,
como o... Artaud dizia que o ator devia se entregar, e um ato... Um auto de fé...
É um incêndio em público que você vai, que você dê, como um monge budista que
toca fogo nas próprias vestes e faz ali. O ator tem esse tipo de entrega, de
generosidade. Então, o ator que não consegue ser absolutamente doador de toda
sua existência para quem está dialogando com ele e, em cima dessa entrega,
construir o mundo, esse ator tem sempre dificuldade quando chegar a hora da
estréia. Porque ele quer fechar, e eu não deixo. Eles vão fechando e eu abro.
Eles vão passando uma cena atrás de outra e eu paro. Porque o que ele quer é
fixar procedimentos. Nada fixo tem a ver com a vida. É um movimento permanente,
um movimento permanente, movimento... Eu não quero compromisso com esse
estancamento. É preciso fluir, fluir, fluir. Como isso que eu te falo também. O
fluxo dar certo, é permanente, nada deve te interromper. É para isso que nós
fomos feitos. Nós não fomos feitos para: “quer isso, quer aquilo, quer aquilo”.
Isso é loucura! Que dá doenças, que dá caroço no seio, dá hemorróidas, dá
derrame, dá enfarto, dá tudo, Entende? Essa fluência é importante. Então,
quando se trabalha, se trabalha pensando nisso. Agora se você amplia isso, esse
fluxo é permanente na rua, na praça, na cidade. E isso o tempo todo. Se você
faz um espetáculo que fecha nele e põe a platéia para cima olhando, você está
fazendo um espetáculo de rua, mas já não está atingindo a cidade, porque você
nem tem condições de atingir a cidade. Você vai estar parado no lugar e eles
vão estar te olhando. Agora, se você descobre o movimento, seu espetáculo
começa a caminhar.
LK – O que você chama de movimento?
AMIR – Você se locomove no espaço. Não tem uma
manifestação popular, popular no sentido que atinja a todos cidadãos, sem
explicação, que seja parada. Ele é fluxo, ele é fluente como a narrativa
cinematográfica. Na cidade, eu trabalho com todas as formas de movimento e
todas as formas de cortejo. E encerro com uma encenação no palco. Nesse de
Mossoró, um palco de setecentos metros quadrados...
Lindo! E aí, faço um espetáculo. O espetáculo tem
esse movimento. Ele flui no tempo, nenhuma cena é estanque. Uma coisa entra por
dentro da outra. E a narração se faz. A postura nunca é realista. Entende? A
narração sempre distanciada, toda a narração é distanciada. Então, você nunca
se identifica com o personagem que você está fazendo. Você está sinalizando uma
opinião sobre aquilo. Então, você faz na cena aquele movimento que você fez nos
cortejos. No movimento. Já te falei do Auto de Natal que eu quero fazer?
LK – Não, não, aqui no Rio?
AMIR – Na cidade de Natal! É a de Natal. É o
aniversário da cidade. A cidade está fazendo quatrocentos anos! Então é uma
comemoração cívica e religiosa. Pra mim, é o ideal para experimentar o que que
é a população nesse momento. E toda a cadeia social que te oprime e te
determina, está enfraquecida, está relaxada, para você poder viver esses outros
conteúdos festivos. Então, você faz o cortejo. Lá em Mossoró os assuntos eram:
emancipação feminina, voto feminino, a oposição das mulheres à Guerra do
Paraguai. São temas da cidade. A Libertação dos escravos e a luta contra o
Cangaço.
LK- Vocês criam roteiros?
AMIR – Existe um tema. A cidade me deu um tema, e
os escritores da cidade escrevem. E os atores da cidade encenam. Você está
longe da especialização. Isso também pressupõe que o cidadão... ele é capaz de
expressar. Da mesma maneira que você não pode ter controle dos meios de
produção, que é a forma do capitalismo dominar, também o controle dos meios de
expressão, dos meios expressivos é uma forma de dominação. Entende? É expressão chegando ao alcance de
todos!
LK – E a dramaturgia...
AMIR – Qual é a dramaturgia? Olha um tipo de
dramaturgia, que eu trabalho. E tem uma outra dramaturgia do movimento dos
carros alegóricos por dentro da cidade. Como é que essa história vai sendo
contada.
LK – A história vai sendo narrada de que forma?
AMIR – Sempre em verso. A poesia é essencial. O ser
humano é poético. O povo gosta de poesia. O jornal do povo é a literatura de
cordel. Entende? A classe média é que não gosta. Ela gosta de banco, de
construção civil, desses negócios. (Risos) É perda de tempo para eles.
Pra eles, nós somos um absurdo, a poesia é um absurdo! É aquela briga que tinha
no “Noite de Reis”... A briga que tinha na “Noite de Reis”, o bobo da corte,
que era o artista… em extinção. (Pausa) Ele era totalmente abominado
pelo intendente do palácio, que não era um aristocrata, era um burguês. Burguês
puritano protestante, que era o Malvólio. E o confronto todo é do Malvólio
contra o Feste. No final, o bobo da corte ganha, mas na realidade perdeu,
porque quarenta anos depois, os puritanos fecharam os teatros na Europa. Quando
voltou, ele já voltou muito modificado. Dentro dos palácios, fazendo melodrama,
fazendo dramas de terror. Já passou a ser um outro tipo de entretenimento, não
era mais um mundo como o teatro elisabetano. O espetáculo elisabetano era um
mundo completo
Porque nesse teatro se tem a possibilidade de falar
do mundo. A platéia é o mundo, porque não tem distinção de classe na platéia.
Todas as classes sociais estão ali representadas. Os atores não estão separados
por nenhuma cortina, tudo se integra. Tudo junto falando do homem, do mundo e
da sua vida. Não falam... Você pega um texto do Shakespeare e todas as classes
sociais estão representadas lá. Você pega um texto do Ibsen, só tem a
burguesia. Muito bem até, mas é situado. Entende? Então, estando em Natal, eu
vou fazer agora é um auto de Natal. Então, eu tenho três grandes carros
alegóricos, trabalho com um cortejo. Cada rei mago puxa um cortejo. São três
Reis Magos. Cada um puxa um cortejo. Cada um de uma parte da cidade,
provavelmente. E vão se encontrar num ponto qualquer. Então, o primeiro carro é
o anúncio feito à Maria, que quando ela fica grávida. Então, eu vou trabalhar
com os carros cujo movimento tenha uma dramaturgia sendo narrada. Vou botar
anjos. Vou botar anjo pendurado. Vou botar luzes, música o tempo todo. Anjos,
que, aqueles anjos que nordestino faz que… maravilhosos. E mulheres grávidas,
um bando de mulheres grávidas segurando as fitas que saem do carro alegórico,
cantando e dançando músicas de pastoril que fala do nascimento. E vão estar em
volta? Entende? (Pausa)
LK – Mulher grávida de verdade?
AMIR – Não. Vou botar barrigas de brinquedo... Se
tiver as grávidas, a gente vai chamar, se vierem as grávidas. Ótimo. Mas eu
quero comemorar o Natal. Eu quero comemorar o milagre do nascimento, e da
renovação, não a coisa mística. O Salvador que veio pra tirar a gente da merda...
Eu quero dar esse sentimento, essa força, essa alegria, essa vontade de viver.
Então, esse carro vai dançar pela cidade. Vai andando. No outro lado, tem outro
carro, que são as hostes do Herodes. É militarizado, é vermelho, é sangrento.
Dizendo também: “São as hostes que combatem a vida e querem matar o menino que
vai nascer.” E outro carro, que é o próprio presépio. O menino nascido e o povo
em volta, festejando cantando e dançando. Tudo isso com um cortejo com milhares
de pessoas, cada um desenvolvendo esse tema. Se cruzam, andam pela cidade, o
povo entra junto, não tem cordão de isolamento, as pessoas vem atrás e
participam. E se canta e se fala texto, e tem microfone que gente vai dizendo
texto, vai recitando poema. É muito legal. É a Idade Média, é o Século de Ouro
da Espanha... Então, é o Carnaval. É o Maracatu. É o Bumba Meu Boi. É o
Reisado. É tudo! É tudo! É a festa, a celebração. Então, vai tudo... Aquilo que
o Jean Jacques Rousseau falava: ”era um pau umas fitas você dança em volta,
está feita a festa, está feito o teatro.” Um pau com fitas que você dança em
volta com as fitas coloridas. Isso é dramaturgia. Feito uma dramaturgia.
Entende? Que é parecido com a escola de samba, mas não é escola de samba. A
gente avança por outros setores, por outros canais. A gente não copia a forma.
A gente copia a ética, que dá tranqüilidade. De que maneira se vê o povo e como
é que eu quero me relacionar com ele. Que comportamento eu vou ter ali dentro,
né?
[....].
LK – Você falou muito até agora das grandes
platéias! Você fala como se falasse da história do teatro como dos grandes
festivais. Você fala dos grandes festivais. Você fala do Carnaval, não é?
Então, você acha que, necessariamente, para você atingir essa totalidade, ele
tem que ter essa grandeza, equivalente a um show de rock? Ou as pequenas ações,
as micro-ações funcionam?
AMIR – Estou, claro! Não há grande sem pequena.
Então, se eu for pensar o grande, só o grande, vou pensar um tipo de
manifestação de massa que não massifique.
Atingir muitas pessoas, atingir grandes públicos
sem se sentir massificadas. Mostrar coisas que podem estar atingindo o coração
de uma pessoa, sem que ela precise esquecer o namorado que está do lado dela.
Pelo contrário. Então, isso começou pequeno. Isso que eu faço grande começou
pequeno. E o pequeno está na base disso...
LK – Qual é a
estratégia?
AMIR – A idéia é o conceito de botar tudo o que
acontece na rua. Mas não sou eu que faço tudo. Para cada cortejo desse, tem
dezenas e dezenas de instituições de grupos, de vida cultural, que saem por seu
trabalho. São grupos de quadrilhas, grupos de danças, grupos de música
folclórica, grupos de capoeira. Entende? Organizações culturais... Eu estou
trabalhando com um universo muito grande. Eu estou somando autorias. Esse
grande é feito da soma de todos esses pequenos. E isso também garante uma
mobilização da cidade muito grande. Porque o seu grupo de quadrilha do seu
bairro vai estar lá. Então, você também vai estar representado lá.
Então, todo o grande que está na rua é a soma de
todos os pequenos que vem de todos os bairros da cidade. Então, a cidade está
representada ali. Essa representação se faz no espetáculo e na platéia. Porque:
“A minha quadrilha veio, todo mundo da minha quadrilha, os familiares, todos
vem pro centro, pra participar da festa.” Então, a primeira edição que se faz,
você consegue muito. Na segunda edição, eles já passam o ano inteiro se
preparando para vir. Entende? Agora eu estou começando a alargar, a idéia da gente
é alastrar isso daí. Então, agora em Mossoró eu já fiz uma coisa que chamava:
volantes teatrais. Tinha duzentos atores, a gente enchia três ônibus, dois
carros de som e aquela multidão numa praça do subúrbio e ensaiava, fazia o
ensaio lá. Aí fazia o ensaio, eles escutavam falar, o povo juntava, a gente
dizia o que é que era. A platéia participava, alguns dos atores moravam naquele
bairro. Foi uma coisa linda! Linda! Então, você vai mobilizando… Isso deve
crescer. Essas volantes teatrais tendem a se modificar pra ir levantando a
cidade nos seus arredores, contaminando a periferia. E quem sabe um dia você
tem o cortejo do centro. Você tem outro cortejo lá e lá, você domina a toda
cidade. Porque você não pode ter elite de artista. Os artistas são todos os
cidadãos e as comunidades produzem os seus meios expressivos. Então,
provavelmente um dia, a gente vai estar fazendo isso. Meu sonho é fazer com que
um dia a cidade de Natal cante e dance na hora do Auto. Venham todos pra fora e
façam sua festa. No Egito, tem uma festa, que é a festa da Primavera. No dia da
entrada da Primavera, ninguém fica em casa. Todos saem, vão fazer pic-nic
embaixo de uma árvore. Então, saem todos, são milhares de pessoas, o que é
maravilhoso. Ninguém, ninguém fica dentro de casa, todo mundo procura uma
árvore e canta, e dança e come naquela árvore. E festejam ali. Entende? Então,
eu queria que um dia isso viesse a acontecer. Meu sonho é, nós estamos falando
de um trabalho extremamente pioneiro, porque sempre se fala de um pioneiro que
vem da Antigüidade. Eternamente jovem. E eternamente velho. Entende? O novo e o
velho permanentemente, permanentemente. Então, a gente não se dá conta, mas nós
estamos falando de uma coisa muito contemporânea. Eu não sei quem faz mais isso
no mundo. No Brasil, eu tenho certeza que ninguém. Embora, haja cada vez mais
gente fazendo espetáculos, cortejos. No Nordeste, está cheio de espetáculos
dessa natureza. Entende? E eles vão crescer. E eles são o futuro. Eles são o
futuro. nós estamos falando de um tipo de vanguarda, isso que eu faço, isso de
mobilizar a cidade inteira a fazer isso, não é novidade absoluta. [....] É um
avanço na prática de um pensamento que está começando agora a se
consubstanciar. E esse pensamento só pode ser levado adiante por povos ricos-subdesenvolvidos
como nós, que trabalhamos com as fontes vivas. Nós temos o ritual, nós temos a
festa, nós temos a religião. Você tá entendendo? Não são os países capitalistas
desenvolvidos que vão poder propor. Eles estão no fim. Deles é o fim, o que a
Alemanha pode propor pra gente, a não ser o desespero e o suicídio? Que é o que
eles propõem. Diariamente, diariamente, diariamente. Tudo que vem é a dor, é o
desespero, é a falta de esperança. Você anda pelas ruas da Alemanha, um país
capitalista mais desenvolvido do mundo, e é a dor e a tristeza que estão lá. E
quando é a alegria, é aquela alegria enlouquecida. Bêbada, entorpecida,
intoxicada. Então, não são eles que vão trazer novidade. Há anos que venho
falando: “Tá na hora da gente propor. Nós temos que propor”. Quando eu fiz os
mendigos da Beija-Flor, eu estava com isso na cabeça: “É o espetáculo moderno
brasileiro do Teatro Popular Brasileiro! É o TPB!” Como tem a música MPB, é o
TPB!
“Nós temos que propor! Por que a gente não vai
propor? Porque eu vou ter medo e vergonha de propor? A gente tem que propor. É
hora da gente propor!” Eu estava saindo da rodinha pequena e indo pro desfile
de escola-de-samba. Então, você imagina minha cabeça como estava. Nunca pensei,
eu achava que ia fazer um desfile de escola-de-samba... Nunca pensei que eu
fosse fazer a cidade... Entende?
LK – O que você acha da rodinha pequena hoje?
AMIR – Eu adoro! A gente ainda faz a rodinha
pequena. A coisa que eu mais adoro é sair e falar com o público que está aqui
do meu lado. É imprescindível. Ela não vai desaparecer!
LK – Ela é o bloco?
AMIR – É.
LK – Os blocos não
acabam?
AMIR – Não podem acabar, senão acaba o samba. Se
ela acabar, o espetáculo vai ficar fascista. Fica uma manifestação de massa de
baixo pra cima. Não pode acabar. Não pode. É propriedade popular! Entende?
Então, é essencial que isso se mantenha. Entende? É importante que isso se
mantenha.
LK – Mas, engraçado, porque na Europa, você vê
tantas coisas acontecendo nas esquinas... E aqui, você vê isso com tanta dificuldade.
AMIR – Porque lá eles já chegaram ao fim da curva.
Eles tem que sair. Não agüentam mais. E tem coisas aí interessantes. É... Só
uma coisa que eu queria falar, antes de falar dessa coisa da Europa. É que você
falou a palavra, e é básico em todo o meu pensamento: UTOPIA. Acho que a grande
manifestação, a grande novidade pra mim nisso tudo, é que eu perdi a vergonha
de acreditar numa utopia.
LK – É. Pois é, porque é
mal, hoje em dia você falar nisso!
AMIR – É. E eu não estou com nenhum problema, pelo
contrário. Quando aumentou a descrença, eu comecei a acreditar. Entende? Então,
esse pensamento utópico me alimenta, ele me arrasta, ele me leva... Senão, eu
vou fazer o quê? Amargura européia, de falta de saída? Esses meninos na Europa
que estão saindo da rua fazer, eles estão com uma utopia na cabeça. Eles estão
rompendo com a situação limite, que a sociedade e a civilização ocidental
atingiu, e estão começando a romper, romper. A Europa, com tradição cultural e
com um passado forte, rompe. A América é mais difícil, não tem passado. Mas na
Europa, eles vão rompendo. Aí nós fomos pra Holanda, agora, na volta do Egito,
pensando que talvez desse pra montar o nosso espetáculo “Homens e Mulheres” na
Holanda. E pedimos lá para a Embaixada do Brasil ver e para surpresa nossa:
“Olha, vocês não precisam pedir autorização não. Em qualquer praça que vocês
quiserem, podem trabalhar E nós: ‘Nossa! Que coisa maravilhosa! Então vamos
fazer!” Aí, pedimos a eles se eles podiam arranjar pra gente um equipamento de
som. Quando pedimos o equipamento de som, veio a notícia da prefeitura da
Holanda: “Com equipamento de som não pode, tem que pedir autorização e marcar
com muita antecedência, dentro de um planejamento de dois anos”
Porque com som não é teatro de rua: é teatro na rua.
O teatro de rua não tem controle, o cidadão dentro do confronto com outro
cidadão, sem usar meios de amplificação. É o ser humano com o ser humano, se
resolvendo. E se eu ponho o som eu já estou fazendo o teatro na rua, que é
diferente. Aí, tem que ter controle, tem outra estética, é outra interferência
na vida da cidade. Veja como isso caminha.
LK – Interessante...
AMIR - Então, o grande e o pequeno estão aqui. É só
o pequeno que me leva a pensar grande. É um ser humano que me faz pensar na
humanidade. Eu não penso na humanidade para pensar no ser humano. Porque aí é
uma abstração.
LK – É, mas se pensou muito. Você já deve ter feito
isso um dia da sua vida?
AMIR – Nossa! O tempo todo... Quando eu queria
salvar!
LK – É o grande... Foi o grande equívoco. Com boas
intenções...
AMIR – Com a melhor das intenções. Só entendi isso
quando eu larguei tudo e fui pra rua, como um camelô solitário, fazer teatro.
De repente, de diretor premiado, virei um camelô no meio da rua, com um bando
de gente na Cinelândia em volta de mim. Sem saber nem o que fazer, aquelas
pessoas, tudo pertinho e eu lá fazendo coisas e eles encostando em mim. Até
abrir a roda, até entender o espaço, até dominar essa linguagem, até pensar a
dramaturgia e abrir o mundo todo, como eu estou querendo abrir agora, foi um
grande caminho.
E uma teoria nossa, que nasce da prática, não são ensaios filosóficos.
Tudo que eu estou falando pra você aqui, é tudo testado. E eu só estou
acreditando nisso, porque no ensaio de ontem me levou a pensar nisso hoje. E
amanhã, o que aconteceu hoje vai me fazer pensar o dia de amanhã. Assim o Reich
me serviu de luz teórica em alguns momentos, o Brecht serve, o Marx serve, o
Peter Brook serve, o Walter Benjamim serve. São informações que você tem, que
iluminam a sua prática. Não iluminariam nada se você não tiver essa prática. E
essa conversa também, que nós estamos conversando aqui, é uma conversa de
futuro. Mas eu acho que é o futuro que se anuncia. Quem sabe o Terceiro Milênio
valorize as idéias, as criações dos artistas não seja isso? Nós estamos falando
de uma possibilidade futura. De um a possibilidade de uma realidade que se opõe
a uma realidade virtual.
AMIR – Agora que está expandindo, a gente faz. Agora o ‘Tá na Rua’ está no Brasil
inteiro, é um sinônimo de resistência. Então, eu sinto que pra muitas pessoas,
por todos os lugares em que viajo, muitos fazem o trabalho, acreditando que
pode dar certo. Porque eles vêem que o “Tá na Rua’ está há vinte anos nesse
espírito. Então, é um modelo de resistência que ajuda a militância e o
exercício de outras pessoas. Onde eu vou fazendo teatro de rua, encontro cada
um fazendo o seu teatro de rua, o teatro de rua é uma variedade incrível. Não
tem dois grupos para teatro de rua igual! Cada um tem um jeito. Entende? Então,
é uma liberdade muito grande, não tem produtor em cima.
LK – Claro, está fora do
jogo...
AMIR – Está fora do jogo. Então, é livre. Cada
grupo é um. Agora eu e a minha presença e o meu trabalho e minha coerência, e
minha resistência, é sempre um farol para as pessoas, você entende? Eles se
apoiam na minha luta, pra fazer a luta deles. Eu gosto de fazer isso.
Entrevista realizada em 2003.