O TRAUMA COMO PERFORMANCE DE LONGA DURAÇÃO
Diana Taylor
New York University
Tradução: Giselle Ruiz
Resumo
Diana Taylor descreve neste artigo dedicado ao seu
mestre Richard Schechner sua visita guiada à Villa Grimaldi, antigo campo de
concentração e extermínio da Ditadura Pinochet, nos arredores de Santiago do
Chile. Através das lentes de sua máquina fotográfica e do relacionamento com o
guia da excursão, o sobrevivente Pedro Matta, a autora tece afinidades entre os
conceitos de trauma e de performance, ambos de natureza
repetitiva e presente. No decorrer do texto, memória, testemunha, corpo, afeto,
história e identidade são alguns dos aspectos que compõem a abordagem de um
tema que, segundo a autora, é tão multifacetado que os caminhos onde o que é
pessoal, interpessoal, social e político vêm todos juntos, e em que o trauma
pode a ser analisado como uma performance de longa duração.
Abstract
In this paper
which is dedicated to Richard Schechner, Diana Taylor describes her guided
visit to Villa Grimaldi, a former torture and extermination camp on the
outskirts of Santiago de Chile. Through the lens of her camera and her
relationship with the guide of the walking tour, the survivor called Pedro
Matta, the author points out affinities between the concepts of trauma and performance, both
based on repetition and always happening in the present. Memory,
testimony, embodied practices, affect, history and identity are some aspects
that Diana Taylor analyses during this article which subject, in her opinion,
is so multi layered that the personal, inter-personal, social and political
come together, and trauma can be considered a durational performance.
“Comportamento restaurado é o comportamento vivo tratado como se
fosse a tira de um filme pelo diretor. Essas tiras de comportamento podem ser
reorganizadas ou reconstruídas: elas são independentes do sistema que as criou
(social, psicológico, tecnológico). Elas tem vida própria. A ‘verdade`
original, ou ‘fonte` do comportamento, pode ser perdida, ignorada ou contradita
– mesmo quando essa verdade ou fonte está sendo coberta de honras (...) Dando
origem a um novo processo, usadas no processo de ensaio para criar uma performance,
as tiras de comportamento não são um processo em si, e sim coisas, itens,
‘matéria`. O comportamento restaurado pode ter longa duração”. Richard
Schechner, “A Restauração do Comportamento”.1
Pedro
Matta, um homem alto, forte, veio até nós assim que chegamos na discreta
entrada lateral de Villa Grimaldi, um antigo campo de tortura e extermínio nos
arredores de Santiago do Chile. Ele é um sobrevivente que, duas vezes por mês,
oferece uma visita guiada para pessoas que querem conhecer o local. Ele cumprimenta
Soledad Fallabella e Alejandro Gruman, seus colegas de mina no Chile que,
devido ao meu trabalho com direitos humanos na Argentina, acharam que eu
gostaria de conhecer Matta2. Este me
cumprimenta e me entrega a versão em inglês de um folheto escrito por ele:
“Caminhada por um Centro de Tortura do Século XX: Villa Grimaldi, Guia do
Visitante”. Eu digo a ele que sou mexicana e falo espanhol. “Ah”, ele diz, me
olhando nos olhos, “Taylor, eu achei que ...”. Nós quatro andamos até a área.
Eu levo o folheto e a minha máquina fotográfica – Alejandro leva o meu
gravador. Eu vim bem preparada para a minha ‘visita`.
A
área é ampla. Parece tanto uma ruína como um canteiro de obras, pois há ao
mesmo tempo entulhos e sinais de um prédio em construção – um espaço transitório,
em parte passado, em parte futuro. Por várias razões, é difícil se ter uma
idéia exata de onde se está pisando. Uma placa na entrada, Parque por la Paz Villa Grimaldi, informa aos visitantes que 4500
pessoas foram torturadas aqui, e que 226 pessoas desapareceram e morreram entre
1973 e 1979. Mais um parque pela paz seguindo a tradição que vai de Hiroshima
até Virginia Tech, penso eu, que tenta neutralizar a violência renomeando o
local. Tiro uma fotografia do aviso que nos lembra que nós estamos em um
memorial e que essa história trágica pertence a todos nós. Como em muitos
espaços memoriais, o aviso nos pede para nos comportarmos respeitosamente, a
fim de que ele possa permancer, continuando a instruir as pessoas. Mas como é
que alguém se comporta num antigo centro de tortura? E o que é que o lugar se
propõe a ensinar? Lição Um, claramente, é que, por várias razões, a
responsabilidade pela existência desse lugar é ‘nossa`.
“Por
aqui, por favor”. Matta, um homem formal, nos conduz pelo espaço agora vazio.
Ele nos leva até um pequeno modelo do campo de tortura para nos ajudar a
visualizar o projeto arquitetônico de um lugar que já não existe mais. A
maquete está lá deitada, como um caixão, sob um largo guarda-sol de plástico.
Como em muitos sítios historicamente importantes – o Templo Mayor na Cidade do
México me vem à mente – o modelo oferece um rápido panorama do local. A
diferença aqui é que o que se vê no modelo não está mais lá. Mesmo que nós
estejamos fisicamente ali presentes, de pé sobre o antigo campo de
concentração, não somos capazes (felizmente) de ‘realmente’ vivenciá-lo. Ao
invés disso, o espaço que visitamos é um daqueles que não se pode ver, nem
mesmo conhecer. Então, alguém poderia perguntar, qual é o propósito da visita?
O que somos capazes de vivenciar num campo minado, já que os indicadores
desapareceram? O espaço em si é capaz de expressar o evento que ocorreu ali? Um
pouco adiante, a placa na entrada explica todos os quem, porquês, o quê e
quando. Minhas fotografias podem ilustrar o que esse lugar é, mas não o que ele
foi. Ainda assim, nós estamos aqui com Matta, que nos leva para a caminhada.
Matta agora fala espanhol, o que
faz diferença. Ele parece relaxar um pouco, embora sua voz seja muito tensa,
pigarreando com freqüência.
O complexo,
originalmente uma bonita casa de campo usada para festas da classe alta e
eventos de finais de semana, havia sido tomada pelo DINA, uma organização de
forças especiais de Augusto Pinochet, criada para interrogar pessoas detidas
pelos militares durante as batidas policiais3.
Eram tantas pessoas detidas, que muitos espaços civis foram transformados em
campos de concentração improvisados. Villa Grimaldi era um dos mais famosos. No
final dos anos de 1980, um dos generais o vendeu para que uma companhia de
construção o demolisse, substituindo-o por um projeto habitacional.
Sobreviventes e ativistas não puderam conter a demolição, mas, após um grande
movimento de contestação, em 1995 eles conseguiram preservar o espaço como um
lugar de memória e um parque de paz4. Matta,
entre outros, tem gasto muito tempo, dinheiro e energia para garantir que
aquele espaço permaneça como lembrança viva do que o Governo Pinochet fez para
o seu povo. Três épocas, com três histórias, estão sobrepostas neste espaço. A
ironia, claro, é que Terranova conta tanto a mentira elegante e civilizada do
pré – como a mentira recuperativa do pós -.
A
maquete do campo de extermínio nos posiciona como espectadores. Nós estamos ao
alto do campo, olhando para a sua estrutura organizacional. Bem, na verdade é a
rendição. Com o lugar atual destruído, a réplica materializa a memória. A
entrada principal a nossa esquerda dava passagem para os carros que vinham
trazer os presos encapuzados para o prédio principal. A fala de Matta e a nossa
imaginação povoam o espaço vazio. Ele aponta para a miniatura do grande prédio
principal, onde os oficiais moravam, bem ali, exatamente onde nós estamos
agora; depois os pequenos prédios que percorrem todo o perímetro da esquerda,
onde os prisioneiros eram separados em grupos, tendo seus olhos vendados –
homens ali, mulheres lá. Desenhos em miniatura feitos pelos sobreviventes
demarcavam com uma linha a periferia do local – prisioneiros encapuzados sendo
empurrados por guardas com rifles para os seus três segundos de latrina; um
hall com pequenas celas trancadas e vigiadas por homens armados; um desenho em
tamanho real da parte interna de uma das celas, em que se pode ver uma meia
dúzia de homens algemados e encapuzados espremidos; uma câmara de tortura vazia
onde há uma cama beliche de metal equipada com correias de couro, uma cadeira
com alças para os braços e para os pés, uma mesa com instrumentos de tortura.
Os objetos são referências de comportamentos. Sabemos exatamente o que
aconteceu lá/aqui. Matta mostra outras estruturas na maquete. Está claro que a
maquete também dá a ele uma sensação de controle – controle sobre o terror. Ele
é explícito sobre a violência, e muito claro na sua condenação do papel da
C.I.A. na crise chilena. Ele olha para mim e lembra que eu não sou AQUELA
audiência – uma audiência sim, mas não AQUELA audiência.
Vendo
a maquete, tudo fica visível através do ato dele de recontar a história. Nós
estamos ao lado do prédio principal, usurpando o lugar dos militares. Olhar me
faz ter a estranha fantasia de conseguir observar ou agarrar o ‘todo`, a ficção
de que eu posso entender a violência criminal sistêmica, mesmo se nos
posicionamos simultaneamente dentro e sobre o desgaste. A nós é permitido identificar sem identificação.
Isso aconteceu ali, naquele tempo, com eles, por eles ... Nós só estamos
envolvidos até o ponto em que podemos entender a informação que nos está sendo
transmitida pela simulação e por Matta, nosso guia.
O
encontro, a esta altura, é sobre representação e explicação. O modelo, criado
pelos sobreviventes, encena a evidência – aqui, isso aconteceu. O artifício, ou
simulação, dá aos outros um vislumbre da ‘verdade’ de Terranova. Eu tiro
fotografias, imaginando o quanto esse tênue poder evidenciador da fotografia é
capaz de ampliar a reivindicação por evidências no modelo do campo. Certamente,
nós sabemos o que aconteceu em Villa Grimaldi, mas existirá alguma coisa a mais
que Matta (ou eu, com a minha câmera) possa fazer para tornar visível a
violência criminal?
Nós
olhamos em volta para o ‘lugar em si’. Não há muito o que se ver no antigo
campo. O que ficou foram poucas estruturas originais, réplicas das celas de
isolamento e uma mancha da torre maior do complexo, esvaziada, embora não vazia
– esvaziada de alguma coisa palpável na sua ausência. Nenhuma história. Nenhum
responsável. Somente simulações de práticas muito cruéis. O sentido repousa na
fricção entre o lugar vazio e a história que Matta conta. Assim como opostas às
gloriosas ruínas antigas, nas quais a narração traz os edifícios para a vida,
aqui os objetos foram re-construídos e colocados de modo a realçar a narração.
Com o
campo demolido, Matta informa e demonstra, mas ele não parece estar
pessoalmente ou emocionalmente envolvido com aquilo que descreve. Ainda assim,
a evidente desconexão entre a rendição de Matta e as terríveis coisas que ele
descreve me desafiam a preencher as lacunas. Seguindo Matta de um lugar para
outro, fica claro para mim que, atualmente, o pouco que eu faça se intensifica
quando imagino o que aconteceu ali. O meu olho da mente - minha própria área de
encenação – internaliza a violência, preenchendo as lacunas.
Matta
caminha em direção à entrada original – o portão de ferro maciço, hoje
permanentemente fechado, como se, trancando, se eliminasse a possibilidade de
uma violência ainda maior. Desse ponto de observação, fica claro que uma outra
camada foi acrescida ao espaço. Uma esteira de telhas decorativas, pedaços de
cerâmica original encontrados no local, formando uma enorme forma de seta no
chão, apontando para fora do portão em direção à nova ‘fonte da paz’ (“símbolo
de vida e esperança”, de acordo com o manual de Matta) e um grande pavilhão. A
arquitetura participa da reabilitação do local, movendo-se do passado para o
futuro. Matta ignora que, no momento – ele ainda está no campo de tortura, e
não no parque da paz. Esse não é o tempo certo para reconciliação. Sua história
traumática, assim como seu passado, arrasam com qualquer possibilidade de
futuro. Ele continua a caminhada através do campo de tortura5.
Matta
fala impessoalmente, na terceira pessoa, sobre o papel da tortura no Chile –
meio milhões de pessoas torturadas e 5000 mortas numa população de 8 milhões.
Sou eu que faço a matemática ... Houve muito mais torturados e menos
assassinados no Chile do que na Argentina. Ele fala sobre o desenvolvimento da
tortura como um instrumento do Estado desde a sua fase experimental até
tornar-se a prática altamente precisa e testada dos dias de hoje. Pinochet
escolheu quebrar ao invés de eliminar os seus ‘inimigos’ - uma população de
fantasmas, ou indivíduos destruídos pela tortura, jogados de volta na
sociedade, o que deveria ser um alerta para os demais. O tom de voz de Matta é
controlado e reservado. Ele está dando informação histórica, não testemunha
pessoal, enquanto sublinha o trabalho diário no campo, a transformação da
linguagem, já que algumas palavras vão sendo declaradas ilegais. ‘Crimes’,
‘desaparecidos’ e ‘ditadura’, por exemplo, foram substituídas por ‘excessos’,
‘suposições’ e ‘governo militar’.
Enquanto
caminha, ele descreve o que aconteceu e onde, e então eu noto que ele mantém os
olhos no chão, um hábito criado desde que fora obrigado a andar de olhos
vendados. A mudança é gradual – ele começa sutilmente a representar enquanto
reconta os fatos. Eu me sinto impelida a registrar o momento – tiro uma
fotografia, como se pudesse capturar um movimento interior, para dentro, no
espaço escuro sobre o qual estamos, mas que não podemos ver. Ele caminha mais
profundamente para o campo minado – “Aqui”, apontando para um ponto vazio:
“Geralmente inconsciente, a vítima era tirada da parrilla e, se fosse homem, era arrastado até aqui6.
Quem sabe as lentes da máquina possam captar o que eu não consigo. Olhando para
baixo, vejo cacos de telhas de cerâmica coloridas e pedras que agora marcam os
locais em que antes havia os prédios e os lugares onde as vítimas eram
empurradas para a latrina ou para a sala de tortura. Enquanto o seguimos, nós
também sabemos o nosso caminho mantendo o olhar no chão: “Sala de tortura”. “Celdas para mujeres detenidas”
(Celas para mulheres corajosas).
Gradualmente,
o pronome usado por ele muda – eles os
torturaram se torna eles nos
torturaram. E ele nos traz mais pra perto. Sua performance anima o espaço e o
mantém vivo. Seu corpo me conecta com aquilo que Pinochet queria que
desaparecesse, não apenas o lugar, mas o trauma. A presença de Matta encena a
reivindicação, a incorpora, lhe dá corpo. Ele sobreviveu para contar. Estar no local, com ele, transmite um sentido
dos crimes que é muito diferente de olhar para baixo, no modelo. Gloriosas
ruínas – como Machu Pichu e Chichen Itza – evocam locais de antigo poder e
glória, passados misteriosos e romanceados, destinos turísticos únicos, lugares
onde “nós” (não desse lugar, não desse tempo) somos capazes de performar o
inimaginável – manter o passado intacto como passado, mesmo se nos movemos sobre ele. Ruínas obscuras como Villa
Grimaldi trazem o tempo para bem perto. Agora. Aqui. E em muitas partes do
mundo, enquanto falamos. Enraizada como sou, não posso imaginar um passado que,
de repente, é restaurado como uma prática. Eu agora também faço parte desse
cenário; eu o acompanhei até aqui. Meu peito dói. Minha garganta se aperta.
Meus olhos “desavisados” olham diretamente para baixo, mimeticamente, mais do
que reflexivamente, através dos seus olhos também direcionados para baixo7.
Eu não vejo verdadeiramente; eu imagino. Eu presencio (como um verbo ativo). Eu
participo, não nos eventos, mas no recontar desses mesmos eventos. Minha
presença não me oferece nenhum sentido de controle, nenhuma ficção de
compreensão. Ele caminha, ele senta, ele conta. Quando ele chega à parede do
memorial, marcada com os nomes de todos os mortos (construída vinte anos depois
dos violentos eventos), ele desmorona e chora. Chora por aqueles que morreram,
mas também pelos que sobreviveram.
“A tortura”, diz ele, “destrói o ser humano. E eu não sou exceção. Eu
fui destruído pela tortura”. Esse é o clímax da excursão. Passado e presente
vem juntos no caminho. A tortura trabalha no futuro. Ela fecha qualquer
possibilidade de futuro. O local da tortura é transitório, mas a tortura em si
é transfomadora – ela transforma as sociedades em lugares aterrorizantes e as
pessoas em zumbis8.
Assim
que Matta deixa a parede do memorial, o seu tom de voz muda novamente. Ele saiu
do espaço da morte. Agora ele é mais pessoal e informal na sua interação
conosco. Ele conta de que modo outros sobreviventes lidaram com seus traumas,
fala das semelhanças e diferenças com outros centros de tortura e campos de
concentração. Diz que precisa voltar atrás, mesmo se isso o faz sentir-se
enjoado. Quando chega em casa, ele conta, toma aspirina e vai para a cama. Nós
continuamos caminhando, passamos pela réplica da torre de água onde os
prisioneiros mais valiosos ficavam isolados, passamos pela “sala da memória” -
os pequenos prédios que originalmente serviam como sala de fotografia e de silkscreen. Na piscina ele nos
conta um dos mais arrepiantes relatos, transmitido a ele por um colaborador. Na
árvore da memória, ele toca os nomes dos mortos que ficaram pendurados nas
árvores, como folhas. Diferentes peças de arte comemorativas nos relembram que “Ell olvido esta lleno de memória” (O esquecimento está cheio de memória).
Depois
que deixamos o local, convidamos Matta para almoçar num restaurante ali perto,
recomendado por ele. Ele nos conta sobre a sua prisão em 1975, por ser um
estudante ativista, o seu tempo como prisioneiro político em Villa Grimaldi,
seu exílio nos Estados Unidos em 1976 e o seu trabalho como detetive particular
em São Francisco, até retornar ao Chile em 1991. Foi preciso usar suas
qualidades investigativas para reunir a maior quantidade de informação possível
sobre o que aconteceu em Villa Grimaldi, para identificar os prisioneiros que
passaram por lá, e o nome dos torturadores do local. “Um dia, ele disse, eu
estava almoçando naquele mesmo restaurante, depois de uma das visitas à Villa
Grimaldi, quando um ex-torturador chegou e sentou numa mesa perto com a
família. Pareciam estar se divertindo muito”. Eles se olharam, Matta levantou e
se retirou do local.
Mais
tarde Soledad me diz que Matta faz a visita pelo mesmo caminho todas as vezes –
pára no mesmo local, reconta os mesmos acontecimentos, chora na Parede
Memorial. Alguns estudiosos consideram isso estranho, como se a rotina tornasse
a emoção suspeita. Será que as lágrimas são verdadeiras? Todas as vezes? Sempre
no mesmo local? Será que há algo de performance nisso tudo? Ou talvez o que
incomode a alguns é simplesmente que a excursão é uma performance – um exemplo daquilo que Richard Schechner
chamou de ‘restauração do comportamento’ – tiras de comportamento que são
re-encenadas, reiteradas e repetidas “nunca pela primeira vez?”
De
todas as instigantes questões levantadas por Villa Grimaldi, essa é a que mais
me intriga: Será que esse “nunca pela primeira vez” da performance é o mesmo
“nunca pela primeira vez” do trauma? O trauma, como já escrevi outras vezes, é
conhecido por sua natureza de repetição. Ele nunca acontece pela primeira vez9.
A dificuldade em separar o ‘trauma’ do ‘stress pós-traumático’ assinala o papel
central da reiteração, assim como da repetição.
Nem
todas as queimaduras ou ferimentos criam o trauma – fala-se em trauma apenas
quando produzem a característica pós-choque. Trauma, assim como performance, é
sempre presente. Aqui. Agora. Será que o modelo de restauração do comportamento
pode iluminar as erupções corporificadas, repetições e flashbacks que caracterizam o
trauma? Ou será que a ênfase de Schechner de que “o comportamento é separado
daqueles que se comportam” (36) atualmente entra em confronto com a teoria do
trauma que afirma que o trauma não pode ser separado do “eu” que o vivencia?
Transmitido a outros, sim, mas nunca separado. Matta pode nos transmitir a informação,
pode até mesmo nos afetar através da sua excursão programada do campo de
tortura, mas o que é que tudo isso nos diz sobre o seu afeto? Faz parte do seu show? Será Matta um
sobrevivente profissional do trauma? Sou sua testemunha? Sua audiência? Uma voyeuse do turismo do trauma? Que tipo de cenário é este? Ele nos ajuda a
pensar naquele caminho como uma performance multifacetada na qual (como o
próprio espaço) várias coisas acontecem ao mesmo tempo?
Para
entender melhor este cenário, é preciso separar a rotina do afeto. A rotina – a
caminhada através de Villa Grimaldi – nos oferece um exemplo claro de
“restauração de comportamento”. Matta é, como ele mesmo nos disse, o nosso
“guia” dessa excursão claramente orquestrada. Cada passo segue o esboço do
livro que ele escreveu; cada lugar nos fala da prática ali realizada: “Aqui a
tortura começava...”, Matta nos explica. A explicação é sempre a mesma. Ele
quer que entendamos o que aconteceu ali. Nesse sentido, a excursão trata de
“nos” transmitir informação. Teoricamente, qualquer um poderia liderar essa
excursão. A rotina é separada de Matta.
Por
outro lado, a rotina incorpora várias dimensões quando é performada por Matta.
Para qualquer outro guia, a rotina tem uma função mneumônica – as pessoas são
capazes de lembrar de alguns eventos associando-os com um lugar10.
Mas, para um sobrevivente da tortura, retornar ao local do ocorrido é um caminho da memória – através do ato de caminhar, o
corpo vai se lembrando. Memória sempre implica em reapresentação, mesmo que
seja no nosso olho da mente. Os neurocientistas sugerem que estes caminhos são
fisiológicos, tanto quanto materiais, fixados no cérebro como circuitos de
neurônios com padrões específicos. Estar numa determinada situação pode
automaticamente provocar certos comportamentos, a não ser que outras trilhas da
memória estejam disponíveis para substituí-los11.
Uma mudança na rotina de Matta poderia também modificar o seu afeto.
Assim
como outros sobreviventes, acredito que Matta seja tanto uma vítima traumatizada
como uma testemunha do trauma. O trauma também é uma performance de longa
duração, caracterizado pela natureza das suas repetições. Para Matta, a
experiência não dura duas horas – ela tem durado anos, desde que ele foi dado
como desaparecido pelas forças armadas. Os seus reiterados atos de caminhar, de
mostrar, de contar, de liderar excursões de pessoas pelos locais dos
acontecimentos caracterizam o trauma e as ações que podem levar ao alívio do
próprio trauma. Para ele, assim como para as Mães da Praça de Maio, a excursão
ritualizada oferece tanto um consolo pessoal como uma forma de vingança. A
memória é, ao mesmo tempo, uma ferramenta e um projeto político – uma honraria
para aqueles que já se foram, e também um lembrete, para aqueles que irão ouvir,
de que as vítimas foram assassinadas. A sua caminhada, assim como a marcha das
Mães, oferece suporte testemunhal a uma sociedade em ruínas, na qual o sistema
jurídico não é capaz de fazer justiça aos perpetuadores. Além disso, a
caminhada, assim como a marcha, também torna visíveis os locais de memória que
mantém outra topografia de lugar e de prática, não de terror, mas de
resistência – a vontade não apenas de viver, mas também de manter viva a
memória.
Eu
posso entender melhor o que Matta está fazendo aqui do que o que eu estou
fazendo aqui. Será que a performance
de Matta me quer como audiência ou como testemunha? O que significa estar
testemunhando e a qualidade de estar no
local? Ele precisa dos outros (nesse caso, eu) para completar a tarefa de testemunhar,
para manter frescos esses caminhos da memória e criar mais ativistas dos
direitos humanos. Testemunhar, um
verbo transitivo, define tanto o ato como a pessoa que o leva a cabo; o verbo
precede o nome – é através do ato de testemunhar que alguém se torna uma
testemunha. A identidade repousa sobre a ação. Nós somos, ao mesmo tempo,
sujeito e produto dos nossos atos. Matta é testemunha daqueles que não estão
mais vivos para contar; ele é testemunha para si mesmo enquanto conta a sua
própria experiência traumática; e é também testemunha no sentido jurídico –
tendo trazido acusações contra a ditadura de Pinochet. Ele é ainda o objeto do
meu ato de testemunhar – precisa de mim para dar reconhecimento ao que ele e os
outros passaram em Villa Grimaldi. A transitividade de ‘testemunhar’ nos mantém
juntos – essa é uma razão pela qual ele gosta de medir a natureza da sua
audiência. O ativismo como conseqüência do trauma (assim como o próprio trauma)
não pode ser simplesmente contado ou conhecido; ele precisa ser repetido e
externalizado através de uma prática.
Mas
por quê eu preciso dele? Eu me pergunto sobre a aura e me preocupo com o voyeurismo e com o turismo (negro).
Será Matta o meu close up
– trazendo uma violência sem palavras tão perto de mim quanto possível? Se sim,
com que propósito?
Esse
tema é tão multifacetado, que os caminhos onde o que é pessoal, inter-pessoal,
social e político vêm todos juntos. Percorrendo a Villa Grimaldi com Matta, as
enormes questões de violação dos direitos humanos e de crimes contra a
humanidade – tão abrangentes e gerais, por um lado – tomam forma imediata e
incorporada. No ponto exato sobre o qual agora estamos de pé, outras pessoas
torturaram e mataram seus companheiros de maneira brutal. Matta foi uma dessas
vítimas da brutalidade. Eu sei que, é claro, pelo fato de estar ali com ele, eu percebo tudo de forma diferente.
Além disso, e num outro nível, a proximidade corporal da atrocidade me permite
um espaço para sentir as minhas próprias experiências da violência criminal num
contexto público e político mais aberto. A dor de Matta ativa a minha dor –
diferente, de muitos modos, mas não num sentido essencial: Em nossa vida
diária, nós não temos uma maneira de lidar com os atos de violência capazes de
destruir os limites da nossa compreensão. A terapia oferece conforto para
alguns – mas, para outros, esse espaço de luto e de lembranças, brutalmente
esvaziado, é mais apropriado.
Todos
nós vivemos em proximidade com a violência criminal – e, embora alguns a tenham
sentido mais pessoalmente do que outros, essa violência nunca é apenas de ordem
pessoal. Se focarmos apenas o trauma, corremos o risco de deixar de lado as
questões políticas. Estando aqui de pé, ao lado dos outros, trazendo os
edifícios e as rotinas de volta para a vida, nós estamos dando suporte ao
testemunho não apenas da perda, mas também de todo um sistema de relações de
poder, hierarquias e valores que não só autorizaram, mas também exigiram o
desaparecimento de certos membros da população.
As
questões colocadas por essas ruínas negras podem não estar totalmente
dissociadas das de outras ruínas mais gloriosas. Assim como as pirâmides da
América Central, elas também tornam visíveis aspectos das estruturas sociais
que, normalmente, escapam ao olhar. A topografia da região em torno de Chichen
Itza, por exemplo, seria capaz de expor a área inteira como uma rede de antigas
cidades, apesar de algumas delas estarem soterradas e nem todas cobrarem
ingresso para visitação. Com as ruínas negras, também há muito mais oculto do que
os olhos podem ver. Havia 800 centros de tortura no Chile sob o domínio de
Pinochet. Se tantos lugares cívicos e públicos tais como vilas, estádios, lojas
de departamentos e escolas foram usados para a violência criminal, como podemos
saber se toda a cidade não funcionou clandestinamente como um centro de
tortura? A escala de violações é assustadora. A onipresença dessa prática se
espalha e contamina a vida social. A visita guiada através de Villa Grimaldi
nos proporciona uma experiência intensa e condensada daquele complexo de
paredes. Mas ali, de dentro do campo, nós sabemos que a violência só aparece
isolada e suportada por tudo que a circunda, acentuando o conhecimento
incontrolável, que a violência criminal espalhou, que nenhuma parede pode
contê-lo e nenhum guia é capaz de explicá-lo. Nós podemos controlar um local e
cercá-lo, mas a cidade, o país, o cone sul, enfim, todo o hemisfério tem sido
tomado pela violência – e para
além dele também, é claro, e isso não acontece somente porque os U.S. decidiram
terceirizar a tortura. Será que a ruína negra é repugnante porque nos coloca
tão próximos da atrocidade? Porque, participando, internalizamos a violência?
Ou porque a prática onipresente situa todos nós numa proximidade constante com
a ruína negra que é a nossa sociedade?
Talvez
aqui também seja necessário separar o afeto de ações como visitas guiadas. O
trauma de Matta é dele, inseparável do que ele é. Ainda assim, a explicação das
causas é transmissível. Nós dividimos a nossa caminhada. E, enquanto eu o
acompanho, sua experiência ressoa comigo, em parte porque eu, atualmente, sei o
que aconteceu aqui/lá e aceito que
esse, como muitos outros campos, é também de minha responsabilidade. Embora eu
não aceite a responsabilidade por torturar ou matar outros seres humanos, eu
participo de um contexto político que depende de fazer com que certas
populações desapareçam – seja através da criminalização da pobreza, por
exemplo, ou da doença mental. Eu sou constantemente alertada a manter a
vigília, a “dizer algo” se eu “vir algo”12.
Para mim, a carga emocional da visita aparece com a fricção entre o lugar e a
prática – inseparável, embora, às vezes, contraditória. Durante a visita, foi
restaurada alguma coisa que coloca vários mundos meus em contato direto uns com
os outros. Como o próprio espaço multifacetado sugere, eu posso reconhecer
camadas e camadas de práticas políticas corporais que compõem esses lugares, as
histórias que trago para eles, assim como as emoções que vão sendo instigadas
enquanto caminhamos sobre eles, criando nossos próprios caminhos. Eu vivencio
aquela visita como performance, e também como trauma, e sei que nunca é nem
pela primeira nem pela última vez.
Matta,
segundo consta no manual, “sente um desejo forte de transformar história em
memória”. Ele torna o passado vivo através do seu percurso. Da mesma forma que
o trauma mantém o passado vivo em Matta – o futuro não é uma opção para ele,
enquanto Terranova o mantiver sob controle naquele lugar. O ‘futuro’, na
verdade, poderia ser um projeto muito diferente desse. Na melhor das
possibilidades, o futuro poderia significar transformar essa memória em
história, essa caminhada testemunhal em evidência, a repreensão pessoal de
Matta em indiciamentos legais e obrigatórios contra os perpetuadores, e os
visitantes em testemunhas, ativistas dos direitos humanos e eleitores. Talvez
uma outra pessoa, alguém que nunca tenha sido torturado, pudesse então liderar
a visita guiada. Mas esse futuro está condicionado a um passado em que o trauma
tenha sido transcendido ou resolvido. O futuro não é avistado naquele local,
mesmo existindo uma seta que aponta para a fonte, simbolizando “vida e
esperança”. A visita não nos oferece o fim do trauma, nem o fim da performance.
É olhando para baixo que nós fazemos a nossa caminhada por esse espaço
transitório entre lembrança e projeto futuro.
1 Este artigo é dedicado a Richard Schechner – cujo
trabalho enriquece a minha escolaridade, e cuja amizade enriquece a minha vida.
Uma versão anterior, diferente deste ensaio, aparecerá em Telling Ruins in Latin América, editado por Vicky Unruh e
Michael Lazzara, (a ser publicado em breve por Palgrave Macmillien, 2008).
A epígrafe é do livro de Richard Schechner, Between Theater and Antropology. Philadelphia:
University of Pennsylvania Press, 1985, pg.35.
2 A pesquisa
resultante deste projeto foi publicada (em parte) em Disappearing Acts:Spectacles of Gender and Nationalism in Argentina’s
Dirty War. Duham: Duke University Press, 1997.
3 DINA é a sigla para
Dirección Nacional de Inteligência.
4 Teresa Meade, em
“Holding the Junta Accountable: Chile’s ‘Sitios de Memoria’ and the History of
Torture, Disappearance, and Death”, escreve que, quando foi criado, em 1995,
Villa Grimaldi era o “único
‘memorial’ de tortura na América Latina” . Hoje o ‘Parque de la Memoria’ e a
ESMA em Buenos Aires também funcionam como memoriais. (Radical History Review,
29; 2001, p 123 -139. Acessada
online em Outubro de 2008. http://muse.jhu.edu/journals/radical_history_review/v079/79.1meade.html
5 Para uma excelente
análise do tour de Pedro Matta e de Villa Grimaldi, ver Michael J. Lazzara, Chile in Transition: The Poetics and
Politics of Memory. Gainesville: University Press of Florida, 2006.
6 “Pedro Alejandro
Matta, Villa Grimaldi, Santiago de Chile. A
Visitor’s Guide”. Auto-publicação, pg.13.
7 Walter Benjamin
8 Martial-Godoy Anativia. The Body as Sanctuary Space: Towards a Somatic Topography of
Torture. (manuscrito inédito,1977).
9 Trauma Driven Performance .
Correspondentes da Seção Maior da Edição Especial da PMLA de Direitos Humanos.
Ed. Domna Stanton. Outubro de 2006, vol. 21, No. 5, pg 1674-7.
10 Ver Thomas A. Abercrombie, Pathways of Memory and Power: Ethnography and History Among an
Andean People. Madison: University of Wisconsin Press, 1998.
11 Ver Vittorio Gallese, Intentional Attunement .The MirrorNeuron System and its Role in Interpersonal Relations. http://www.unipr.it/arpa/mirror/pubs/pdffilles/Gallese/Gallese-Eagle-Migone%202007.pdf