À BEIRA DA MOBILIDADE

OU: A AUSÊNCIA DE CONSCIÊNCIA DA CINÉTICA

Ensaio sobre a estética no tempo e no espaço

Wolfgang Bock

(Bauhaus, Weimar)

Resumo

O artigo busca refletir sobre a relação existente entre o espaço e o tempo em diferentes domínios: o desenvolvimento de meios de comunicação e arte, os conceitos de culturas tradicionais e modernas e de trânsito na  esfera pública da cidade. Demonstra  que mesmo o moderno conceito de tempo e velocidade está relacionado com um ponto de congelamento no espaço. Também na física moderna a velocidade é relativa e seguida por uma sombra ou uma espécie de ausência de consciência  que se concretiza numa categoria de espaço. Isso é mostrado na idéia japonesa de iguse, uma pensamento-imagem que se apresenta como todas as possibilidades de movimento como uma monada.

Palavras–chave | Media | Arte | Monada | Espaço Público | Cidade

 

 

I.           Iguse

O conceito japonês de iguse baseia-se na posição imóvel de um corpo que contém todos os outros movimentos possíveis, como uma casca de noz.

Iguse não significa um único fotograma que paralisa o filme num determinado ponto e recorta uma parte do fluxo flutuante. Está mais próximo à ideia de um filme virtual inteiro em uma foto, do começo ao fim, comparável ao conceito monádico, popular nos tempos do barroco: cada parte de um mosaico contém, em si própria, o projeto da figura inteira – obviamente não em apercepção, mas dormente, em percepção – como teria dito Leibniz.1

Em analogia a esse conceito, pode-se dizer que todos os movimentos referem-se a um ponto imóvel, que enquadra a possibilidade da própria mobilidade. Em vez de se usar o termo enquadre, pode-se também falar em uma ausência de consciência do movimento como padrão de referência, na qual todos os movimentos estão começando ou terminando. Tal configuração pode não ser estática, claro, e deve ser imaginada se movimentando.

 

 

II.         Modernidade e mobilidade

A física

A modernidade pode ser descrita como um tipo de mobilização – no duplo sentido de fazer mover e preparar-se para a guerra. No paradigma dos antigos gregos e romanos e do início do cristianismo, o chão – a terra – não está se mexendo, está parado. Copérnico apresentou uma nova representação do cosmos e a descrição de Newton do espaço baseada na suposição da gravidade mudou o estado de normalidade do mundo de estático para móvel. Einstein conseguiu mostrar que até mesmo a posição fixa do espectador está em movimento e, em relação a sua posição, as próprias dimensões do cosmos mudam dentro de certos parâmetros.



 


Da pintura ao espaço cibernético

Ao considerarmos o desenvolvimento da imagem física do mundo, talvez fique fácil – recordando Lászlò Moholy-Nagy e Walter Benjamin – descrever a expansão da base materialista da estética desde a imobilidade até o movimento numa sequência como esta:

pintura (e escultura), fotografia, filme, vídeo e objetos tridimensionais no espaço cibernético, dentro do qual é possível aproximá-los e distanciá-los.

· A pintura em tela mostra objetos que não podem se movimentar;

· o filme usa a fotografia imóvel e dispõe imagens individuais em ordem cronológica, assim como fez Edweard Muybridge pela primeira vez na sua cronofotografia ou como Marey e Anschütz, que conseguiram colocar a sequência de imagens em um filme.

· o vídeo fixa figuras flutuantes numa tira magnética,

· enquanto os novos equipamentos digitais baseiam-se no armazenamento de dados, mas não mais em forma analógica, o que abre possibilidades inexistentes nos processos analógicos.

 

 

 

Contudo, as mais avançadas técnicas modernas de imagem – como se vê em Matrix I (EUA, 1999), dirigido pelos irmãos Wachowsky – voltam-se aos princípios da cronofotografia ao colocar centenas de câmeras em volta do objeto e conectá-las por meio de um computador.

 

 

Com esses equipamentos, é possível retornar e avançar com a finalidade de criar um novo tipo de fotograma tridimensional. As câmeras de alta velocidade são tão rápidas que a imagem composta exibida é, novamente, uma foto imóvel, mas vista agora por todos os ângulos. Está mais próxima ao conceito de iguse que ao recorte do fotograma tradicional.

Pintura moderna

Como mostra o arquiteto suíço Sigfried Gideon, os fotógrafos Muybridge, Marey, Edgerton, Gilbreth e outros influenciaram muitos artistas modernos, que tomaram o princípio do movimento e o transferiram à pintura imóvel.2 Kandinsky, Duchamp, Delauney, Boccioni, Klee e Miró usaram os princípios do movimento na pintura estática.

 

 

Klee, em especial, tenta mostrar em seu curso de 1925 na Bauhaus como um ponto começa a se tornar uma linha e uma linha, a se tornar um quadrado; Moholy Nagy fez experiências nesse sentido com figuras tridimensionais.3

A pintura abstrata moderna remete ao espaço imaginário, que não é o mesmo que o espaço físico real. Ele tem mais em comum com o espaço psíquico, o espaço corporal e o espaço do sonho fora da esfera física real de tempo e espaço. Esses movimentos são, ao mesmo tempo, internos e externos.

Além disso, os filmes digitais contemporâneos – como se pode explicar com Gilles Deleuze – estão deixando de mostrar o mundo exterior (em movimentação) e apresentando uma tendência a mostrar um mundo imaginário (baseado em tempo), com novos conceitos físicos e possibilidades, como atravessar paredes e matéria, como se estes fossem reais.4 Em seus filmes “Wormholes” (1996) e “Mind’s Eye” (1998), o diretor australiano Gregory Godhard mergulha no tempo e no espaço.

 

 

Dentro dessa perspectiva, a teoria estética contemporânea – como anarqueologia da mídia – está novamente interessada nas protoformas do filme, já que a técnica de filmagem mais recente remete aos primeiros filmes.5

Seguindo esse ponto de vista, o conceito de mobilidade também está mudando de movimentos lineares para círculos e anéis que nos levam de volta ao relacionamento entre tempo e espaço ou o enquadramento do movimento. Mas a ausência de consciência do movimento, tal como a chamamos no início, também significa que os filmes digitais modernos não são mais filmes no sentido de documentação do mundo exterior – como eram os primeiros filmes. Eles estão mais próximos dos espaços dos mundos interiores que da realidade dos objetos materiais. Mas nas imagens dos filmes, o mundo exterior ainda é representado em analogia ao princípio da realidade, que deve ainda ser interpretado por meio da psicanálise dos sonhos do indivíduo.

III.       Tempo e espaço nas primeiras formas simbólicas

Em um de seus primeiros artigos, o filósofo alemão Ernst Cassirer argumenta que a noção de estética muda numa sociedade moderna com base em um conceito de tempo semelhante ao que Kant desenvolveu ao transferir as ideias de Newton. As antigas sociedades fundamentam-se num conceito mitológico que pertence a uma noção de contiguidade.6 Nesse lugar arcaico, nada se perde: todos os mortos estão presentes, assim como todas as coisas. Cassirer usa a astrologia da renascença e sua série de objetos – minerais, plantas, animais, temperamentos, doenças, direções do vento, caráter humano, planetas e signos astrológicos – como exemplo de uma qualidade de tempo baseada num plano de movimentação no espaço.

 

 

Outro exemplo conhecido desse cosmos é a descrição de Malinowski da troca dos anéis do kula na Polinésia: os braceletes mwali e os colares soulava movimentam-se em períodos de 20 anos da esquerda para a direita e da direita para a esquerda no arquipélago.7 Sigmund Freud mostra também que, em sociedades animistas, a mágica da semelhança e do mimetismo – conforme se vê, por exemplo, nas cerimônias vuduístas – baseia-se numa contiguidade de ambas as partes dos objetos influenciados num determinado espaço.8

 

 

Cassirer explica que a relação fundamental de causa e efeito nesses sistemas – que, a propósito, também inclui as implicações metafísicas do cristianismo, islamismo e judaísmo, com sua ressurreição de todos os mortos no Juízo Final – baseia-se em um conceito do espaço mitológico.9Cassirer afirma que esses sistemas são proto-filosóficos. São, para ele, um passo a mais em direção ao desenvolvimento da ciência.

Mas essas descrições não podem ser um testemunho de um nível inferior de conhecimento e, sim, um esclarecimento sobre a relação constante entre tempo e espaço. Em sua crítica da experiência e metafísica de Kant, Walter Benjamin tenta explicar que tal conceito espacial – das crianças, dos bárbaros e dos lunáticos – aproxima-se dos conceitos espaciais da literatura e arte modernas (e, podemos acrescentar, da imagem digital).10

Esse conceito de espaço está também bastante próximo do tipo de técnica de Martin Heidegger como Gestell, que não significa enquadre enquanto armação, mas uma condição invisível de sua aparência que não faz parte do âmbito técnico propriamente dito.11

IV.        Mobilidade e lentidão

Por uma velocidade democrática

Isso significaria que, nos conceitos modernos de tempo, o espaço está presente como um enquadre, uma barreira, ou como um momento de ausência de consciência. O que nos leva de volta ao já mencionado senso de mobilidade como estratégia e preparativos de guerra.

Nesse caso, modernidade e esclarecimento são confrontados pelos oponentes dialéticos de sua intenção, o que traz de volta a lentidão, ao mesmo tempo em que o projeto oficial tenta acelerar a sociedade. Não somente no sentido de arte e filosofia – como mostrou Paul Virilio em seus trabalhos sobre a relação entre guerra, cinema e a acelerada estagnação no horizonte negativo –, mas também no sentido de sociologia do espaço público.12

Gostaria de mencionar a pesquisa de meu colega Ivan Illich, que mostrou que a velocidade mais elevada de um sistema de trânsito – como no conceito do automóvel, por exemplo – afeta a movimentação mais lenta de outros participantes do espaço público do trânsito, como ciclistas e pedestres, que têm de contornar autoestradas, pontes e túneis: o isolamento pelo trânsito. Seu conceito de velocidade democrática, da década de 1970, pede uma nova discussão no contexto da nova mobilização mencionado acima.13

 

 

A política pública é decidida no espaço público. O espaço público não é somente um ambiente estético; ele envolve também o tráfego “econômico” de distribuições e movimentação pessoal. Os movimentos físicos são representativos de todos os membros da sociedade. A violência aqui é um indicador negativo da democracia na sociedade. Portanto, os índices de acidentes não são apenas trágicos como na fé cega, mas também uma expressão do nível de desenvolvimento democrático e de civilização.

À beira da mobilidade

A antiga noção de fé também está presente em outro significado. Nos conceitos modernos de mobilidade, o espaço é um tipo de recurso que poderia ser consumido, assim como, no antigo conceito dos Sete Recessos da Grécia, chronos, a alegoria do tempo, come ctônia, a alegoria do material na forma de zeus, a alegoria do espaço e do éter.14 Isso pode mostrar que o espaço é mais do que apenas um recurso. Poder-se-ia dizer que o espaço público é como uma ausência de consciência cinética da mobilidade. Ele representa o reverso das estratégias formadas voluntariamente.

 

 

Isso traz de volta o interesse por uma nova lentidão. Também na estética – assim como na comunicação móvel – precisa-se não apenas do aparecimento repentino, mas também da distância e de um espaço para reflexões. A necessidade da velocidade está sempre relacionada à fuga. Mas esse padrão é algo que não pode ser eliminado. Como Franz Kafka o descreveu:

Quanto mais se força os cavalos, mais rápido acontece – não o levantar do bloco da base, o que é impossível – mas a ruptura da tira e, assim, a viagem do alegre vazio.15



Notas

1 “Cada parte da natureza pode ser vista como um jardim repleto de plantas e como um lago repleto de peixes. Mas cada galho da planta, cada parte do animal, cada gota de seu fluido é novamente aquele jardim ou aquele lago.” (G.W. Leibniz, Neue Abhandlungen über den menschlichen Verstand", Stuttgart 1993, § 67, p. 29.

2 Cf. Sigfried Giedion, Mechanization Takes Command, Oxford 1948.

3 Cf. Paul Klee, Pädagogisches Skizzenbuch, Bauhausbücher Nr. 2, herausgegeben von Walter Gropius und Lazlo Moholy-Nagy, Munique 1925.

4 Cf. Gilles Deleuze, L’image-mouvement, Paris 1983; L’image-temps, Paris 1983.

5 Cf Siegfried Zielinski, Archäologie der Medien, Reinbek 2002 e Erkki Ilmari.

6 Cf. Ernst Cassirer, Die Begriffsform im mythischen Denken (1922), in: Ders., Wesen und Wirkung des Symbolbegriffs, Darmstadt 1956, P1-70. O texto é um estudo básico de sua teoria das formas simbólicas.

7 Cf. Bronislaw Malinowski, Argonauten des westlichen Pazifik, Frankfurt/M. 1979, p. 114.

8 Cf. Sigmund Freud, Totem und Tabu, Studienausgabe, hrsg. v. A. Mitscherlich et al., Frankfurt/M. 1970 Band IX, pp. 370-371. Cf. do autor, Astrologie und Aufklärung. Über modernen Aberglauben, Stuttgart 1995, pp. 177-186. Outros exemplos em Cassirer, Denkform, a.a.O., pp. 68-69.

9 “Wenn das wissenschaftliche Denken bestrebt ist, den Primat des Zeitbegriffs vor dem Raumbegriff festzustellen und immer bestimmter auszuprägen, so bleibt im Mythos der Vorrang des räumlichen Anschauens vor dem zeitlichen durchaus gewahrt." Cassirer, Begriffsform, a.a.O., pp. 48-49.

10 Cf. Walter Benjamin, Über das Programm der kommenden Philosophie, Gesammelte Schriften, Frankfurt/M. 1983, Vol. II, 1, pp. 157-171; pp. 158-159.

11 "Alles nur Technische gelangt nie in das Wesen der Technik. Es vermag nicht einmal seinen Vorhof zu erkennen." (Martin Heidegger, Die Frage nach der Technik, in: ders., Die Technik und die Kehre, (1962), Stuttgart 1996, p. 46).

12 Cf. Paul Virilio, Guerre et cinéma I, Logistique de la perception, Paris 1984 ; L’horizon négative, Paris 1984 ; L’inertie polaire, Paris 1990.

13 Cf. Ivan Illich, Energy and Equity, Londres 1974.

14 Cf. Pherekydes von Syros, Heptamychos, in: Diels, Archiv für Geschichte der Philosophie I.; Berichte der Akademie der Wissenschaften in Berlin, 1897 und Diogenes Lartios, Leben und Meinungen berühmter Philosophen, Hamburg 1990, p. 8-12, sowie Fritz Mauthner, Wörterbuch der Philosophie. Neue Beiträge zu einer Kritik der Sprache (1910/11), Berlin 1923, p. 498.

15 Franz Kafka, Betrachtungen über Sünde, Leid, Hoffnung und den wahren Weg, in: Hochzeitsvorbereitungen auf dem Lande und andere Prosa aus dem Nachlass, Gesammelte Werke, Frankfurt/M. 1983, Aphorismus No. 45, p. 33.