EM CENA: MUTAÇÕES E DESAFIOS

ON STAGE: MUTATIONS AND CHALLENGES

Maria Lúcia de Souza Barros Pupo

(USP)

Resumo

A diversificação dos contextos nos quais a cena se manifesta, aliada à diluição das fronteiras entre as artes, à variedade dos espaços da encenação e à superação do teatro dramático vêm lançando novos desafios para uma reflexão de ordem pedagógica sobre o teatro. À luz dessa constatação, o artigo estabelece um mapeamento de diferentes modalidades de inserção do trabalho teatral no Brasil hoje, tanto na esfera do sistema educacional, quanto em termos da chamada educação não formal.

Palavras-chave | política cultural | pedagogia do teatro | ação cultural | escolaridade | educação não formal

Abstract

The diversity of contexts in which the theatrical scene is manifested, in addition to the dilution of borderlines between the artistic languages, to the variety of spaces and to the overcome of dramatic theater, have brought new challenges to a pedagogical reflection upon theater. Having cleared it up, this article establishes an overview of different possibilities of inserting the theater practice in Brazil today, either in the educational system, or in the so called informal education.

Keywords | cultural politics | theater pedagogy | cultural action | education | informal education

 


Entre as metamorfoses que vêm marcando a cena nas últimas décadas no Ocidente e em especial no Brasil, destaca-se a explosão dos contextos nos quais ela se manifesta. Escolas, organizações não governamentais, prisões, instituições vinculadas à saúde, entre outras reconhecem no fazer teatral potentes eixos para a realização de suas atribuições.

Se até há poucas décadas o não pertencimento ao extrato dos atores ditos profissionais implicava necessariamente a inserção na categoria “ator amador”, o modelo de referência, único e todo poderoso era o de um modo de produção de mercado e de desempenho artístico tidos como  desejáveis, porque legitimados socialmente. Nos dias que correm entretanto, a diversificação das manifestações cênicas, de seus protagonistas e de seus modos de produção só poderia resultar em abalos profundos na antiga oposição entre amadorismo e profissionalismo.

O exame dessa expansão do terreno do jogo teatral para além dos limites já consagrados pela sociedade abre pistas férteis para se refletir sobre o significado do fazer teatral entre nós, hoje. Dessa ampliação emergem, como não poderia deixar de ser, novos e delicados desafios para a formulação de uma reflexão de ordem pedagógica sobre o teatro.

Campo configurado por Stanislavski quando torna indissociável o crescimento do homem e a depuração da cena, a pedagogia do teatro examina as finalidades, o significado e os processos de aprendizagem nela envolvidos. Atualmente, quando pessoas das mais variadas idades e condições sociais, dentro de projetos de natureza a mais diversificada, experimentam modalidades do fazer teatral, perguntas inéditas sobre as condições e o sentido das aprendizagens por ele proporcionadas vêm à tona de modo imperioso.

Dentro desse panorama, a noção de alteridade merece ser re-examinada. A alteridade, ou seja a capacidade de se colocar no lugar do outro  é reconhecidamente um elemento central na caracterização da potência do teatro. Quando eu empresto o meu corpo para tornar presente um ser humano ausente, amplio minhas referências e minha consciência das relações entre os homens. O diretor suíço André Steiger ilustra bem essa idéia quando afirma que “a relação com o outro, o princípio de alteridade que consiste em se descobrir como o outro de alguém, tanto quanto em se colocar em relação com o outro, fundamentam, acredito, o essencial do teatro” (STEIGER in FÉRAL, 2003: p. 94).

A abertura das fronteiras da cena à qual nos referimos, no entanto, recoloca em novos termos o tema da alteridade. Ela continua se aplicando à relação entre quem atua e o personagem, mas agora se dilata e passa também a dizer respeito à relação entre os que atuam, ou seja, aos jogadores entre si. Entrar na aventura do jogo com parceiros “outros”, diferentes daqueles que costumo cruzar no cotidiano pode se revelar um desafio de proporções consideráveis. O albergado, o militante sem terra, o adolescente da FEBEM trazem consigo universos, expectativas, atitudes diante do mundo que muito provavelmente serão conhecidos apenas intelectualmente pela maioria daqueles que poderíamos chamar de já “entronizados”. A experiência sensível do teatro dentro de grupos resultantes da mescla de segmentos sociais que habitualmente não convivem entre si, certamente trará à tona uma dimensão aguda do exercício da alteridade, juntamente com os desafios que ela inevitavelmente acarreta.

No que se refere à Educação Formal, a Lei de Diretrizes e Bases de 1996 estabelece a presença do ensino de teatro no país nos níveis Fundamental e Médio, o que lamentavelmente não tem sido suficiente para que ele exista de fato, nem tampouco para que exerça o papel preponderante que deveria ter em termos da formação de cidadãos responsáveis e críticos. Coração do projeto democrático, a instituição escolar, como é sabido, está hoje atravessada por profundas crises, pela pouca atenção do Estado e pela crescente dificuldade dos educadores em relação à própria tarefa de transmissão dos legados da humanidade. As profundas transformações sociais que temos vivido na esfera do trabalho ou no âmbito da estrutura familiar entre outras, não cessam de engendrar novas interrogações ainda insuficientemente tratadas pelo poder público no que se refere à tarefa da educação.

Assim, poucas têm sido as experiências relevantes teatrais relevantes desenvolvidas em caráter curricular dentro de escolas públicas e dadas a conhecer nos últimos anos, dando continuidade às publicações fundamentais de Ingrid Koudela ou Beatriz Cabral sobre o tema, por exemplo. A ausência de um projeto educacional palpável e coeso no país vem gerando efeitos perversos até mesmo em meio aos licenciados em Artes Cênicas: o enfrentamento do cotidiano escolar é visto mais como fonte de impasses por vezes até dolorosos, do que como desafio relevante.

É na esfera da chamada Educação Não Formal que podemos constatar significativos avanços em termos dos processos de aprendizagem propiciados pelo teatro. A própria Lei de Diretrizes e Bases acima mencionada consagra essa modalidade de ação quando declara que a educação “abrange processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais”.

Iniciativas tomadas fora dos muros da escola, envolvendo programas de formação sobre direitos humanos, cidadania, lutas contra a desigualdade e a exclusão social, prevenção e combate às manifestações da violência têm encontrado no fazer teatral um vetor privilegiado de suas ações junto a todas as idades. A atuação do CRIA em Salvador, marcada pelo jogo, movimento e musicalidade, constitui sem dúvida um exemplo de excelência nessa linha. Em iniciativas dessa natureza, procura-se despertar os participantes para a compreensão e transformação do contexto em que vivem, investigando mais a fundo suas próprias condições de existência. O diálogo entre coordenador e participantes é privilegiado e ambos saem enriquecidos dos processos experimentados.

Dentro desse âmbito se situa o trabalho conhecido como teatro comunitário, no qual a matéria-prima trazida à cena emerge da comunidade e a estética das performances realizadas tem origem na cultura dos seus componentes, muitas vezes com a incorporação de manifestações populares. A preservação da memória de um local, grupo ou tradição cultural, a perspectiva de desenvolver o espírito crítico dos habitantes ou a formação de multiplicadores teatrais costumam ser objetivos visados nessas situações. Um exemplo significativo em São Paulo, entre tantos outros é o conhecido grupo Pombas Urbanas.

Oficinas de teatro inseridas dentro de casas de cultura, bibliotecas, centros culturais públicos e privados vêm conhecendo nos últimos anos um notável fenômeno de expansão quantitativa, especialmente na periferia das grandes metrópoles.

É nesse quadro que a atuação das ONGs constitui um fenômeno cujas complexas ambivalências estão ainda à espera de uma análise cuidadosa. Numericamente cada vez mais significativas, as entidades do terceiro setor acabam se revestindo de um caráter empresVerdana. Levadas à efetivação de parcerias para obtenção de fundos, seus propósitos –salvo raras exceções – acabam por se sujeitar às metas dos financiadores, em meio às quais a ampliação quantitativa do atendimento costuma ser soberana.

Gradualmente o Estado vem delegando a essas organizações um papel de agente da educação e da cultura que ele nem sempre exerce mediante políticas culturais efetivas. Assim, observa-se freqüentemente que o trabalho teatral oferecido pelas ONGs – tornado visível através de documentação quase sempre revestida de caráter mais publicitário do que analítico – acaba cumprindo uma função de neutralização de contradições, caindo numa certa pacificação e conformismo. Estamos muito longe da caracterização de ação cultural proposta por Teixeira Coelho, que a define como “processo de criação ou organização das condições necessárias para que as pessoas e grupos inventem seus próprios fins no universo da cultura” (Dicionário de Política Cultural).

Em meio a condições de barbárie largamente difundidas pela mídia, temos registros de surpreendentes experiências de trabalho teatral com menores da FEBEM e junto a presidiários. Realizadas em condições extremamente difíceis, nas quais o estabelecimento e o cumprimento de acordos coletivos passa a constituir o âmago dos processos de trabalho artístico, elas chamam a atenção pela ousadia e pelo seu ineditismo, do ponto de vista dos participantes. Um de seus maiores paradoxos pode ser assim equacionado: qual seria o papel cumprido pela experimentação da arte teatral dentro de uma instituição voltada para o cerceamento à liberdade? Algumas interessantes pesquisas – vide os trabalhos de Jorge Spínola, Vicente Concílio e Ligia Borges sobre o tema – vêm demonstrando o caráter formador dessas iniciativas: terreno em que todas as transgressões são possíveis, a cena tem contribuições insubstituíveis a oferecer na esfera da construção coletiva da metáfora artística.

O campo da saúde também aparece no quadro dessa multiplicação do fenômeno teatral; corredores e dormitórios hospitalares se transformam pontualmente em espaços cênicos inesperados, nos quais a interação lúdica entre pacientes e membros da equipe médica é privilegiada, conforme aponta a tese de Lúcia Helena de Freitas. Em outro terreno contíguo a este, o da formação de profissionais de saúde, exercícios de percepção sensorial, assim como dramatização de situações ligadas ao trabalho podem constituir ricos instrumentos de aprendizagem na perspectiva dos estudantes.

Ainda dentro do mesmo campo, observamos usuários de serviços de saúde mental que vêm sendo protagonistas de aventuras teatrais marcadas pela radicalidade, que em última análise nos interrogam sobre os enigmas da mente humana, tais como a Companhia Teatral Ueinzz ou a Companhia Zaum.

Esse movimento de mergulho em experiências teatrais por parte de grupos caracterizados por diferentes “pertencimentos” – tão distante do louvor exclusivo ao ator tido como talentoso – não pode ser analisado isoladamente de outras tendências que vêm marcando a nossa contemporaneidade teatral. Entre elas identificamos fenômenos que têm abalado modalidades consagradas da pratica da cena, como por exemplo a diluição das fronteiras entre as artes, a diversificação dos espaços da encenação ou ainda a superação do teatro dramático. Eles se aliam a outro marcante fator: o epicentro do fenômeno teatral deixa de ser exclusivamente a encenação; a reflexão sobre o processo criativo, a realização de oficinas, viagens, encontros, ensaios abertos complementam e ampliam a envergadura daquilo que a cena dá a conhecer.

A multiplicação dos protagonistas em cena pode ser vista, sem dúvida, como parte da resposta, sempre provisória e incompleta, à questão de fundo que nos mobiliza a todos: como o teatro pode falar do mundo, hoje?

Marcada inevitavelmente por um caráter político, a emissão de discursos teatrais por parte de pessoas de condições as mais diversas, constitui sem dúvida um fenômeno relevante de nossos dias. Em seu cerne brotam questões de ordem pedagógica cada vez mais abrangentes.

A variedade das motivações que levam os interessados a experimentar o fazer teatral, as questões institucionais que enquadram essas situações, o caráter estético das experimentações, todos esses temas se colocam de modo contundente em cada um dos contextos mencionados, a cada início de trabalho.

Quais as modalidades teatrais a serem privilegiadas? A partir de quais critérios professores, diretores, coordenadores de oficina devem eleger as finalidades que orientarão os processos? Quais os caminhos a serem propostos em cada contexto? 

Novas perguntas que vêm configurando o campo da pedagogia do teatro na contemporaneidade; renovados convites abertos à pesquisa...

Referências

STEIGER, André, in FERAL, Josette, L’École du Jeu , Paris: L’Entretemps, 2003, p. 94.

Dicionário de Política Cultural. São Paulo: Iluminuras, 1997, p. 33.

MARIA LÚCIA DE SOUZA BARROS PUPO é professora titular no Departamento de Artes Cênicas da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Obteve o título de doutor na Universidade de Paris III; atua particularmente na formação de professores de teatro e orienta pesquisas de doutorado e mestrado no campo da pedagogia teatral. Sua experiência profissional abrange a coordenação de processos teatrais com crianças, jovens e adultos, em escolas e diferentes contextos e cidades do Brasil e inclui o desempenho junto a grupos teatrais, universidades e programas de formação em instituições públicas. Publicou “No reino da Desigualdade. Teatro Infantil em São Paulo nos anos setenta” e “Entre o Mediterrâneo e o Atlântico, uma aventura teatral”, ambos pela Editora Perspectiva, além de inúmeros artigos em periódicos especializados.

MARIA LÚCIA DE SOUZA BARROS PUPO, PhD is a Full Professor of Scenic Arts at the University of São Paulo, and has a PhD in Arts from the University of Paris III. She educates future theater teachers and supervises PhD and Masters research in the field of theatrical pedagogy, coordinates theater processes with children, teens and adults in schools and different contexts and cities in Brazil, including performances with theater groups, universities and graduation programs in public institutions. She has also published specialized articles, such as No reino da Desigualdade. Teatro Infantil em São Paulo nos anos setenta and Entre o Mediterrâneo e o Atlântico, uma aventura teatral (São Paulo: Perspectiva).