SOBRE O ATOR E O EXERCÍCIO RADIOFÔNICO
ABOUT
THE ACTOR AND THE RADIOPHONIC EXERCISE
Mirna Spritzer
(UFRGS)
Resumo
Este trabalho descreve o exercício da atuação para o rádio
através de duas experiências diversas com atores profissionais. Analisa estas diferenças
do ponto de vista das relações com o corpo, a palavra, o espaço, o ouvinte e
com os elementos técnicos. Apresenta o rádio, mais especificamente a peça
radiofônica, como uma experiência pedagógica para atores que assim ampliam seu
repertório e tornam a voz protagonista da ação.
Palavras-chave | Ator | voz | peça
radiofônica | pedagogia do ator | palavra | imaginação
Abstract
This work
describes the acting exercise for radio with two different experiences with
professional actors. Analyses this differences by the relation they create with
body, word, space, listener and technical elements. Presents the radio, more
specifically the radio play, as a pedagogic experience where actors can enlarge
their repertoire and turn their voices into protagonists of the action.
Keywords
| Actor | voice | radio
play | actor's pedagogy | word | imagination
O rádio é um veículo extremamente
fascinante para o ator e um espaço muito propício para exercer aquilo que
também o caracteriza que é a sedução. Do palco, do corpo inteiro, da forma, do
movimento e da voz. Acoplada aos efeitos, aos silêncios, ou sozinha, a voz é um
poderoso mecanismo de sedução.
Para Analice
Pillar (2003: p. 13), “a sedução envolve tanto o ato de seduzir como o de ser
seduzido, atraído, encantado, fascinado por alguém ou por algum objeto, por
olhares e imagens que nos convidam a ler o mundo e a nos lermos de várias
formas”. Penso que a voz encanta, fascina e
convida a ouvir o mundo.
O rádio possui como característica
primordial, a possibilidade de falar a cada um com a sua particularidade e ao
mesmo tempo a todos que estão ouvindo rádio. E na certeza que estes muitos não
ouvem a mesma coisa, a mesma voz, não vêem o mesmo corpo e se sentem provocados
nas suas memórias e nas suas imagens, de maneiras totalmente diversas.
Vários dramaturgos importantes do século
XX encontraram no rádio um veículo rico para transmissão de suas obras. Samuel
Beckett, por exemplo, escreveu peças diretamente para o rádio e acreditava que
a radiofonia valorizava aspectos fundamentais de seus temas como solidão,
inquietação e intolerância.
Bertolt Brecht não só escreveu para o
rádio como criou uma Teoria do Rádio.
Nestes escritos, Brecht pretende fazer do rádio um instrumento de
conscientização e participação popular.
Como refere Fernando Peixoto (1980: p. 7),
“a visão de Brecht aponta caminhos mais ousados: acentua a necessidade de se
buscar uma estrutura expressiva nova, para experimentar uma linguagem que ganhe
sua gramática específica, a partir de seus próprios recursos narrativos”.
O fato é que o rádio, ainda hoje,
alimenta o imaginário das pessoas e da coletividade produzindo e construindo
saberes e experiências. Como lembra João Francisco Duarte Junior (2001: p. 135),
“a ficção, a imaginação daquilo que ainda não é, mas poderia ser, consiste,
pois, numa das mais eficazes ferramentas de que dispõe a humanidade para a
criação do saber”. Portanto, sensibilidade, imaginação, memória e devaneio
podem constituir uma outra forma de saber.
O rádio, uma pedagogia, dá o direito a
cada um dos milhares de pessoas que compartilham sua escuta, de aprender o que
lhe cabe em sua experiência singular, nascida de seu repertório pessoal. E
também esse repertório se constitui tanto daquilo que é único e particular,
como do que se constrói do imaginário, da memória coletiva.
O fascínio que emana do rádio é o
devaneio. Esse sonhar acordado que nos move para dentro de nós e nos mantém
atrelados ao agora. “Queremos estudar não o devaneio que faz dormir, mas o
devaneio operante, o devaneio que prepara obras”, é o que nos diz Bachelard (2001: p. 175). Estudar a peça radiofônica como
uma voz que elimina o tempo do cronômetro e atua no tempo da criação, recria a
memória, refaz as perguntas, uma voz do devaneio.
Ao realizar a experiência radiofônica o ator tem a
possibilidade de ampliar seu repertório e seus recursos. O exercício da peça
radiofônica permite ao ator colocar-se numa situação em que poderá apoiar-se na
estrutura criativa que o teatro lhe oferece para ousar o acontecimento da voz.
Exatamente como no espetáculo, o aprendizado do ator
acontece no presente do exercício. Ao transpor para a voz a ação corporal, o
ator compreende que a voz é este corpo ao dizer e ao procurar incluir na sua
fala o comportamento, a interioridade e o gesto do personagem.
Ao mesmo tempo, existe uma relação do ator com a palavra que
antecede o veículo, que não pressupõe necessariamente a cena. E nem mesmo um
personagem. As experiências da fala expressiva oportunizam exercitar uma
voz-corpo que é constitutiva do ofício do ator. Exatamente por ter como sua
arte o saber sensível dos sentidos e fazê-los significar em seu corpo
instrumento, o ator possui a vocação para a palavra, para o dizer, para
encontrar na composição das frases, a beleza dos sons e dos andamentos. São
experiências como essas que exigem a voz implicada na produção do dizer, mas na
mesma medida dirigida para o outro que escuta.
Um dos fascínios da palavra é que ela diz algo, mas também
propõe em sua forma, maneiras de dizê-la. Um bom aprendizado para o ator é
escutar-se, confrontar-se com as múltiplas possibilidades das palavras. Não
satisfazer-se com o óbvio, aprofundar-se na música que as constituem,
descobrir-se voz em cada palavra. Perceber que ao buscar novas sonoridades,
outras perspectivas se abrem também para sua voz.
O dizer radiofônico exercita a voz criadora. Dominada a voz
instrumento, é tempo de ensaiar as palavras, o silêncio, os suspiros, a
respiração, o som.
Stanislavski (1989: p. 135) discute a questão da fala mecânica em cena.
Aponta ele que na vida cotidiana sabemos ouvir, pois estamos realmente
interessados. No palco, fingimos ouvir com atenção. Da mesma forma, de tanto
repetir a fala nos ensaios e apresentações, ela se torna mecânica, sem sentido
para quem diz e, portanto, para quem ouve. Isto acarreta uma contracenação também falsa, sem vida. Ao trabalhar-se no
exercício radiofônico, o ator reaprende a manter viva a fala, sempre no
presente, pois é no dizer que está o foco da ação dramática. É o que dizem e
contam os atores, o que determina o andamento da narrativa. O dizer radiofônico
localiza o ouvinte no agora da situação, seja a fala do ator ou do narrador.
Intimidade e
teatralidade: dois exercícios com o monólogo radiofônico
O
monólogo fica privilegiado na peça radiofônica. Usualmente, ele trata de
questões interiores, conflitos existenciais ou é alguém falando consigo mesmo.
O rádio favorece esta situação. Se no teatro é necessária uma mudança de luz,
cenário ou ainda de perspectiva para tornar verossímil a ação de um personagem
pensando em voz alta, no rádio isto se torna mais claro. Por sua característica
temporal, por atingir a audição do ouvinte, a linguagem radiofônica toca mais
diretamente o íntimo de quem ouve. Não é necessário, na situação radiofônica,
abstrair todos os elementos externos que são visuais. Bakhtin, na citação de Meditsch (1998: p. 32), diz que “percebemos o visto como
algo externo a nós, enquanto o que ouvimos ressoa dentro de nós”.
O primeiro exercício, Tudo na vida é passageiro, foi com uma
peça adaptada de um conto de Vera Karam.1
Sensível e delicada como um chorinho a peça trata da solidão, do sonho e das
pequenas alegrias do cotidiano de uma vida simples. Um cobrador de ônibus e
suas lembranças.
O ator convidado foi um ator consagrado
do Rio Grande do Sul, um excelente ator, provavelmente o mais experiente em
rádio. Sua experiência tornava possível compor um diálogo direto com o ouvinte.
Nossos primeiros encontros foram marcados pelo debate sobre o personagem e a
situação da peça. Percebemos a singeleza e simplicidade do protagonista e, de
imediato, o ator criou uma forte empatia que se prolongou por todo o processo.
Propus que falasse ao microfone como a um
velho amigo, como alguém a quem se faz uma confidência. Investir profundamente
no monólogo como uma relação radiofônica, por excelência.
À medida que trabalhávamos, o ator foi
incluindo algumas observações que não só não maculavam o texto, como lhe davam
raro brilho. Estas observações diziam respeito ao caráter do personagem. Assim,
o personagem ia ganhando corpo através de sua voz, de sua tosse, de seus
suspiros, de sua risada.
O cobrador apaixonado da peça foi
ganhando vida com uma história, desejos, pequenezas e generosidade. Eu pedia ao
ator que não tivesse pruridos em relação à emoção. Queria mesmo envolver o
ouvinte, fazê-lo mergulhar na atmosfera de intimidade que se criava. Porque
como lembra Nair Prata (2004: p. 78), “pelo sentido dado à escuta, o rádio vai
se configurar como promotor da intimidade, permitindo aos ouvintes o estabelecimento
de uma relação com o meio através de laços predominantemente emocionais”. E a
emoção aparece em cada palavra. Tem-se a impressão que nada, nenhum som é
desperdiçado.
Gravar e ouvir, simultaneamente ou
deixando a audição para depois, fazia com que o envolvimento com a situação do
personagem se tornasse mais evidente.
Outro elemento a contribuir com a
elaboração da peça era o domínio que conseguimos da pausa, do ritmo, do fluxo
da memória do personagem e da pausa para refletir. Com o engajamento do ator,
conseguimos que as falas do personagem aconteçam como que surgidas no momento
de sua proferição, como se realmente ele estivesse
pensando naquele momento. Ao gravar, ele alcançava um outro tempo dramático,
tornava-se mais lento, mais envelhecido. Já no início temos a sensação de uma
vida cansada, aposentada.
Para aproveitar as possibilidades
acústicas que a linguagem oferece, escolhi alguns momentos para criar outros
planos de ação. Ou seja, em certas partes incluí pequenos diálogos, ou
sonoplastia. Como se ao referir-se a determinada situação o personagem nos
remetesse ao plano de suas lembranças. É o caso do momento em que ele lembra a
primeira vez que a “ruivinha” entrou no ônibus. Ao invés de termos a descrição
de sua conversa com a moça, mudamos o cenário sonoro para o ônibus, com os
devidos sons, e criamos o diálogo dos dois. Fizemos isso em mais quatro
momentos. O resultado é muito rico, pois acrescenta elementos bastante vivos ao
monólogo. A mudança de atmosfera como que envolve ainda mais o ouvinte e
aprofunda o ator no mergulho do personagem. Ouvir os outros planos, as cenas da
vida do personagem, provoca no ator a sensação de estar construindo em si uma
outra memória.
Este jogo de ver-se ou ouvir-se fora de
si, embora estranho, é muito atraente para o ator, pois cria uma sensação de
alteridade que ajuda na composição do personagem.
A possibilidade do estúdio de gravação e
do operador de som, fez com que a adaptação tivesse uma sonoplastia mais
elaborada. Isto se refletiu na versão final em que o sonoplasta investiu ainda
mais na atmosfera de intimidade com o ouvinte, valorizada pela trilha sonora de
chorinhos e música brasileira. A entrada das músicas tem um efeito importante
na criação ou na ênfase das diferentes atmosferas.
Pude observar com cuidado a forma como o
ator se entregava ao exercício. Embora tenhamos experimentado ler e gravar em
várias posições, ele gravava sentado e eu podia notar o quanto seu corpo
inteiro estava mobilizado naquela conversa com o ouvinte. Às vezes, eu fechava
os olhos para ouvir sem ver. Testava a imensa capacidade de cumplicidade que
acontecia.
Quase que simultaneamente, para
contrapor, escolhi adaptar a peça de Collision Course,2 Animal. Nela, rebatizada de Conte até cem e olhe para baixo, uma
mulher conversa com sua filha que está empoleirada em uma árvore no meio de um
bosque nas cercanias do hotel onde passam férias. Num monólogo exuberante, a
personagem desfia toda a história das duas e do pai da menina. Só sabemos da
menina pela conversa da mulher com ela e pelos sons produzidos pelo movimento
da garota nas árvores.
Aqui, de maneira diversa do monólogo
anterior, a atriz não fala ao ouvinte diretamente, ele é a testemunha da
relação dela com sua filha. Percebe-se que, nessa situação, o falar ao ouvinte
tem o tom de queixa, de trazê-lo para o seu lado.
O texto sempre me intrigou pela forma
inusitada como a ação da peça se desenvolve e pela composição muito imaginativa
da protagonista. Pareceu-me desde sempre, que era um material que se prestava
ao exercício radiofônico em função da estranheza da atmosfera e pela
possibilidade de um cenário sonoro bastante criativo.
A atriz convidada foi uma grande atriz
gaúcha. Ela não possuía, ao contrário do ator, experiência em rádio, mas tinha,
como ele, uma carreira brilhante no teatro. Essa diferença foi aproveitada nas
duas fases. Se na fase anterior pedi ao ator que investíssemos tudo na essência
do rádio, aqui queria aproveitar a extrema teatralidade da atriz e colocar isso
assumidamente "em cena".
Por teatralidade aqui, entendo a
qualidade da encenação, do “fingir”, dos múltiplos sentidos que se apresentam
na cena. No renomado Dicionário de Teatro
de Patrice Pavis (1999: p. 372), encontramos uma
citação de Roland Barthes que diz no verbete teatralidade, “é aquela espécie de
percepção ecumênica dos artifícios sensuais, gestos, tons, distâncias,
substâncias, luzes, que submerge o texto sob a plenitude de sua linguagem
exterior”.
Assim, queria ir
a fundo ao que seria a tradução do teatral no rádio. Não queria reproduzir o estilo
do melodrama radiofônico característico da América Latina, pretensamente
teatral, ou as experimentações alemãs e nem as super produções da BBC.
Desejava mesmo investigar como poderíamos
ser teatrais sem ser vistos, como traduzir gestualidade em som, espaço em tempo
e olhar em palavras. Parecia-me que a escolha de uma atriz que eu admirava por
sua performance magnética e grandiloqüente, era o primeiro passo para atingir o
objetivo.
Nas primeiras leituras pude perceber que
aqui, neste exercício, a preparação seria diferente. O texto inicia com a
mulher, vindo de longe e se aproximando chamando pela filha. Assim, a atmosfera
começa a se instalar com uma voz longínqua que vai se tornando mais forte até
tornar-se grito. Em Klippert (1980: p. 95) encontramos
que “o espaço cênico da peça radiofônica é esboçado quando se ouve a primeira
voz. Ela colore o ‘espaço’ com sua atmosfera vital e designa as
circunstâncias”.
Nos primeiros encontros, em nossa sala de
trabalho, propus a atriz que usasse o espaço como desejasse. Isto acabou se
repetindo por todo o trabalho. A ênfase de suas intenções e entonações, a
cadência de sua voz depositava-se no gesto, no olhar, no esgar. Também aqui,
discutimos as primeiras idéias sobre o personagem e sobre a lógica da situação
aparentemente absurda. Como no exercício anterior, esta atriz é acostumada a
trabalhar com teatro de texto, com a palavra e gosta disso. Sua experiência em
mergulhar nas circunstâncias do texto mostrou-se eficaz e criativa.
Nosso sistema de preparação do texto para
o exercício radiofônico encontrava um fôlego intenso com esses dois artistas
formados na melhor tradição do teatro de texto. Desvelar as intrincadas
relações que o dramaturgo engendra na teia da peça é uma tarefa que exige
dedicação intelectual e paixão pelas emoções. Para Stanislavski
(1990: p. 21), “como na linguagem do ator, conhecer
é sinônimo de sentir, ele, na
primeira leitura de uma peça deve dar rédeas soltas às suas emoções criadoras”.
Percebi que esta atriz precisava do
espaço, do movimento, do gesto largo. Mais do que isso, seu corpo acompanhava a
voz desta forma. Não era uma atitude calculada, era como ela trabalhava. Sem
pudor e sem censura, ela expunha-se às falas de corpo aberto. Fazia as ações
como se estivesse em cena. A preparação da peça tinha então esta dimensão, a
dimensão do teatro.
Ao mesmo tempo,
ela entregava sua voz ao exercício como matéria para ser trabalhada. Oferecia o
exagero e a contenção à medida que era solicitada. Tinha curiosidade pelo
veículo rádio e disponibilidade para qualquer proposta. Ela ofereceu à
personagem uma mistura de desespero e intolerância, concretamente reconhecíveis
no vigor da sua voz carregada do engajamento corporal na realização da peça
radiofônica.
Pensando nas duas experiências, tão
diversas na abordagem, percebo que a entrega e a disponibilidade para criar são
as mesmas. Ambos têm domínio da técnica e conhecimento de seu repertório
pessoal de recursos.
Em Tudo
na vida é passageiro temos um personagem que conta a história de sua vida.
Faz isso de forma direta, inclusive com pequenas pausas para que o
ouvinte/interlocutor entenda ou faça perguntas imaginárias. Temos aqui uma
relação de intimidade. Ator e personagem interagem de forma a oferecer ao
ouvinte uma revelação. Algo que só será dito a ele, ouvinte. Uma relação que
prioriza cada indivíduo dos tantos que estarão ouvindo. É como se dissesse: “é
para ti que eu conto isso”.
O ator, com técnica e experiência em
falar ao microfone, com vivência de estúdio, colocou-se imediatamente por
inteiro na voz. Com uma imobilidade aparente, repleta de ação interior, ele se
movimenta através da voz que não se detém por nenhum obstáculo a alcançar a
sensibilidade do ouvinte. Porque, segundo Barthes (1990: p. 248), “toda a
relação com a voz é amorosa [...]”. O ator, como é o caso deste, usa de seus
recursos vocais/corporais/emocionais para emprestar a sua performance os
elementos necessários para a concretização desta que é uma relação de confiança
e cumplicidade.
Em Conte
até cem e olhe para baixo, uma mulher conta a história de sua vida, porém
não diretamente para o ouvinte. Ao buscar a filha e na conversa com ela, vai
desvelando o que há por trás dessa estranha família. Cada ouvinte é testemunha
dessa história que é mescla de incompreensão e medo. Aqui é como se o
personagem dissesse: “ouça e julgue se eu não tenho razão”.
A atriz movimenta-se pelo espaço,
gesticula, troca olhares com uma filha imaginária, e transforma essa energia em
voz. Grita, ironiza, fala docemente e verbaliza a ação.
A imagem das duas experiências
concretizadas nas duas peças radiofônicas é a de que ele, o ator, tem todo o
seu corpo posto na voz. É a voz que gestualiza, se
move e ocupa assim todo o espaço. Ela, a atriz, tem a voz em cada parte do
corpo, como se falasse o gesto, falassem as mãos, falassem os olhos. Como se
cada movimento produzisse voz. Ao agir veementemente no espaço sua voz se
entranha no tempo.
Ele, parado, se coloca na voz e ocupa o
espaço. Ela, em movimento no espaço, espalha a voz no tempo. Ambos atores,
corpos tornados vozes. Vozes encarnando sensações e buscando as sensações do
ouvinte.
A
experiência pedagógica da linguagem radiofônica
Pela longa pesquisa com atores exercitando a peça
radiofônica, temos construído uma profunda reflexão sobre as relações do ator com
a expressão radiofônica.
Há uma entrega corporal nesta atividade que denuncia o
acontecimento da voz. A arte da voz é corporal, é inteira e, portanto educá-la
não pode ser apenas compreendê-la como acessório, como um aparelho de som. A
pedagogia da voz implica em espaço de criação artístico-estética.
Na situação
radiofônica a voz é protagonista da ação e, portanto, necessita de tempo e
espaço para realizar-se como arte e não apenas como instrumento. No rádio a voz
não é um elemento a mais a completar a concepção total do espetáculo
áudio-visual. Ela compõe com sons, silêncios e música, o espetáculo sonoro.
No decorrer do
trabalho fomos criando um sistema que apropria os exercícios e questões da
preparação do ator e seu processo de criação, para a especificidade da
linguagem radiofônica, uma linguagem artística. Nestas circunstâncias, não
importa a visibilidade das ações, do engajamento corporal, dos gestos e
olhares, mas sim o efeito sonoro que eles acarretam. O impulso emocional que
origina a voz é importante na medida em que resulta em efeito sobre a relação
ator ouvinte.
Iniciando sempre
por um estudo de texto, e pelas primeiras impressões destas palavras, buscamos
encontrar a tradução radiofônica das questões que perpassam o trabalho do ator,
como contracenação, personagem, emoção, mobilização
do corpo para o exercício da atuação, a escuta, entre outras.
Baseado
fundamentalmente, nas ações de gravar e ouvir as leituras, os exercícios e os
ensaios, esse sistema favoreceu sempre o efeito da voz. Efeito aqui considerado
não como truque, mas sim como estabelecimento da relação com o outro, nesse
caso o ouvinte. Efeito como o confrontar o outro com suas emoções, pensamentos
e lembranças. Ato de sedução, trazer o outro para perto do rádio para ouvir e
viver.
As gravações e audições acompanham todas
as etapas. Vão demarcando de que forma o estudo começa a se revelar nas vozes,
nas ações sonoras, no andamento da peça. Vão acostumando os atores com o meio.
Vão familiarizando com o microfone, com o ouvir-se, com deixar de lado a
comparação com outros meios, em especial teatro, cinema e televisão, onde são
vistos. Levam ao reconhecimento do veículo radiofônico como uma linguagem em si
mesma, com características a serem apropriadas pelos atores. Uma vez que a gravação
e audição são elementos próprios da linguagem, ao exercitá-las recriávamos a
linguagem e nos apropriávamos dela. Ao contrário do teatro filmado, em que o
que vemos não é nem teatro e nem cinema ou vídeo, na gravação o que ouvimos já
é a linguagem radiofônica.
No exercício do radiodrama,
incluímos gravar e ouvir como prática para o ator. Ou ainda, estabelecemos as
bases de uma prática para o radioator.
Compor um personagem é uma das tarefas
mais instigantes da arte do teatro. Implica auto-conhecimento, observação do
mundo, reconhecimento do outro e domínio da linguagem para ultrapassar o que
poderia ser apenas uma ação mimética.
Compor um personagem é suplantar a fase
da imitação para chegar ao patamar de dar um testemunho único daquela vida.
Utilizar recursos pessoais e artísticos para criar em si um outro acervo de
recordações, pensamentos, sentimentos, opiniões, mágoas, alegrias e ações.
Compor um personagem radiofônico é
transportar para a voz e para a escuta o mundo visível do personagem. É ver-se,
ouvindo-se.
Compreendemos organicamente que a ação é
a essência do teatro e também do rádio. Se no teatro ela gera o movimento dos
conflitos, personagens e situações, no rádio ela determina a existência ou não
dos personagens e acontecimentos, através das vozes e sons. É o câmbio de
ritmo, de situação e de som que motiva a ação radiofônica. E é o que marca a
presença de alguém na cena.
Temos um repertório de escuta que nos faz
criar sons e vozes e ambientes ao mesmo tempo que nos faz reconhecer espaços e
timbres. É desse repertório que nasce a composição vocal do ator e é o que
sustenta a imaginação do ouvinte. A escuta no exercício radiofônico torna-se
também corpo, uma vez que é o contraponto da voz. No decorrer das fases da
pesquisa fomos concretizando a idéia de uma escuta criativa e ativa, seja na
parceria da contracenação, seja na interlocução com o
ouvinte. Contracenar mostrou-se uma ação de escuta sensível com todos os
sentidos, mostrando que a fala mecânica implica em escuta inerte e numa cena
morta. No rádio a fala sem vida, sem organicidade faz sucumbir a atmosfera.
O trabalho de base feito para o texto
pode servir de arcabouço para qualquer veículo, desde que “traduzido” para a
linguagem específica. Personagem, tempo, espaço e até a marcação que traz a
lógica das relações e da ação dramática fazem sentido em qualquer linguagem
ficcional. O texto, base dos exercícios, foi reconhecido aqui como um mapa a
guiar a trajetória das vozes e sons.
O rádio oferece ao ator a ampliação de
seus recursos, de seu repertório e a criação de uma obra insólita na sua
pretensa não materialidade e na sua vocalidade
corporal. Permite a criação de um texto voz sobre o mundo e sobre a experiência
de estar nele escutando seus sons e silêncios. E compondo vozes que digam as
palavras, os sussurros, as interjeições, os suspiros, os bocejos, as
gargalhadas e as lágrimas. E os silêncios.
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Notas
1 Vera Karam, dramaturga gaúcha autora de várias obras como Maldito coração, Ano novo, vida nova e Dona Otília lamenta muito. Seu trabalho
caracteriza-se pelo humor, o ridículo do cotidiano e a existência miúda de seus
personagens.
2 O texto tem a
particularidade de ser de um autor desconhecido. Um professor da escola
conheceu o texto nos Estados Unidos e trouxe sem ter conseguido as referências.
Cada uma das pessoas que trabalhou sobre ele tentou, sem sucesso, localizar
alguma informação. O próprio nome do autor sugere uma forma de pseudônimo,
Collision Course.
MIRNA SPRITZER é atriz graduada pelo Departamento de Arte Dramática/ Ufrgs
em 1982. Doutora em Educação pela UFRGS em 2005. Professora e pesquisadora
no Departamento de Arte Dramática e Mestrado em Artes Cênicas da
UFRGS. Atriz, diretora e radialista atuante no panorama cultural do
Rio Grande do Sul. Entre seus trabalhos destacam-se Mahagonny e A Aurora da minha vida, no
teatro e O Bochecha e Os Anchietanos
na TV. Desenvolve pesquisa sobre radioteatro.
Tem se apresentado como leitora em vários lançamentos de obras da literatura,
como A Caverna de e com José
Saramago, e livros de Moacyr Scliar e Luiz Antonio de Assis Brasil, entre
outros. É autora dos livros A Formação do
ator, um diálogo de ações, pela Editora Mediação e Bem Lembrado, histórias do Radioteatro em
Porto Alegre, pela Editora AGE.
MIRNA SPRITZER, PhD has a Bachelor’s Degree in Dramatic Arts (UFRGS,
1982) and a Doctorate in Education (UFRGS, 2005). She is a Professor and
Researcher for the Scenic Arts Department at UFRGS, an actress, director, and
acting radio broadcaster in the Rio Grande do Sul
cultural scene: in theater, Mahagonny and A Aurora da minha vida; on TV, O Bochecha and Os Anchietanos. She is also a radiotheater researcher and a reader at various literary
releases, such as A Caverna
by and with José Saramago, and other books from Moacyr Scliar and Luiz Antonio de Assis Brasil, among others. Mirna published
A Formação do ator, um diálogo de ações
(Editora Mediação) and Bem Lembrado, histórias do Radioteatro em
Porto Alegre (Editora AGE).