O TEATRO NO HOSPITAL: ARTE (E PRAZER?) NO ESPAÇO DA DOR1

THEATER IN HOSPITALS: ART (AND PLEASURE?) INSTEAD OF PAIN

Lucia Helena de Freitas/ Gyata

(UNIRIO)

Resumo

Este artigo é uma análise dos efeitos de inserção do jogo teatral no espaço hospitalar público, a partir do enfoque de um projeto universitário de extensão realizado em uma parceria entre o Hospital da Lagoa/RJ e a Escola de Teatro da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO. A análise desta experiência recai sobre as formas e distinções possíveis de se conceber o prazer percebido na recepção das intervenções teatrais, por parte dos pacientes, dentro de um espaço de sofrimento – o hospital.

Palavras-chave | ensino do teatro | teatro educação | teatro e saúde | jogo teatral

Abstract

This article analyses the effects of theatrical play insertion in a nosocomial public space from the view of a university extension project fulfilled in a partnership between the Hospital of the Lagoa/RJ and the School of Theater of the Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, UNIRIO. The analysis of this experience is based in the ways and distinct manners of conceiving pleasure by patients at the time of reception of the theatrical interventions, while in a space of suffering – the hospital.   

Keywords | theatre pedagogy | theatre education | theatre and health | theatre games

 


Ao iniciarmos as intervenções teatrais,2 por meio do projeto de pesquisa e extensão “O Hospital Como Universo Cênico” no Hospital da Lagoa (RJ), esbarramos com uma série de questões que advinham do espaço físico e institucional, da disposição dos licenciandos do Curso de Graduação em Teatro da UNIRIO perante aquele ambiente, da diversidade de reações ao trabalho – proveniente de funcionários e pacientes – e da busca de formas teatrais que, ali, pudessem repercutir de forma favorável aos objetivos de criação de um espaço teatral que, interferindo nos rituais estabelecidos, auxiliassem os esforços dos profissionais interessados na humanização dos serviços hospitalares.

 O hospital, por se caracterizar como um espaço onde se destacam o sofrimento e a morte, institui uma seriedade que contamina todos que ali trabalham ou os que para ali se encaminham em busca de tratamentos. Estas seriedade e gravidade, misto de responsabilidade e frieza, transparecem imediatamente quando se adentra o hospital. Os licenciandos sentem logo esta atmosfera pesada e percebem o peso da responsabilidade em criar ali um espaço de teatralidade.

Fazer de um hospital, um lugar para o qual eu deveria levar um pouco de alegria, distração, esperança e amor, foi algo bastante diferente, uma vez que suas paredes são frias e, se você não estiver preparado psicologicamente e a fim de ser diferente, de transformar aquele espaço, você pode, sem perceber se contagiar e sair de lá destruído, percebendo o quanto o ser humano é frágil (Marco Antônio Viestel – licenciando). 

A experiência no hospital nos aproximou de uma realidade que só tomamos contato nos momentos mais difíceis da vida, quando temos problemas de saúde ou quando isso ocorre a alguém que está próximo de nós. Isso faz do hospital um lugar ‘sério’ onde devemos agir cautelosamente. É justamente essa ‘atmosfera séria’ do hospital o nosso ponto de partida, o que nos estimula a levar a este ambiente um pouco de leveza e alegria (Carlos Gracie licenciando).

Logo na primeira reunião em que participei, discutimos o que seria o trabalho dentro de um espaço tão específico como o hospital. Não estaríamos dentro de uma escola, em uma classe com a faixa etária mais ou menos definida ou com crianças saudáveis para jogar. Estaríamos num espaço com estruturas bastante peculiares, com regras de segurança a serem respeitadas, com pessoas que iam desde a infância até a velhice, com pessoas em estados físico e psicológico também muito distintos. Algumas a espera de um exame, outras a espera de um tratamento, outras a espera até mesmo da morte (Carlos Eduardo Menezes licenciando).

Chegava para o meu primeiro dia de estágio na pediatria do Hospital da Lagoa (pavilhão das crianças com câncer) com diversas dúvidas: será que daria conta da minha responsabilidade pedagógica? Conseguiria resistir ao impacto emocional da situação ou ficaria aparentemente impassível ao contexto dramático daquele lugar? Será que nosso trabalho seria bem recebido? Enfim, apesar de tudo queria muito aquela experiência (Cláudia Petrina licenciando).

Parece mentira, mas se eu disser que tenho medo de hospital você acreditaria? Por incrível que pareça hospital sempre me foi algo assustador. Quando pequena, freqüentava mensalmente um hospital, pois meu pai, por ser diabético, vivia internado. E aquele cheiro típico de hospital, me provocava arrepios, não importava quantas vezes eu fosse sempre parecia a primeira vez. E depois de muito tempo sem entrar em qualquer hospital, encontrei-me no maior em que já havia estado. O Hospital da Lagoa era bem maior do que parecia. As alas parecem não ter fim. Tudo era uma imensidão de quartos e portas. Mas tudo se tornou bem menor com o passar do tempo. E, ao invés do ambiente hostil do qual me lembrava, deparei-me com um lugar repleto de crianças, passível a mudanças, a espera de um movimento, um olhar (Mariana Consoli licencianda).

Eu estava um pouco apreensiva com o momento em que iríamos a campo... Eu estava com medo de fraquejar, de morrer de pena daquela situação tão triste e deixar que minha fragilidade se tornasse aparente ou então me deprimisse no sentido de uma revolta que levantasse questões do tipo: Por que isso acontece com crianças, com tanto bandido solto, com tanta gente fazendo o mal impunemente? (Luciana Tosta licencianda).

O primeiro e principal questionamento para o qual ainda não tenho resposta versa sobre a questão da abordagem. Como entrar num ambiente tão tenso como um quarto de hospital? O que dizer para pessoas que talvez não tenham esperanças, que talvez não tenham outro futuro a não ser a morte e a deficiência? A despeito de todas estas questões minha primeira fala para uma criança foi: - Tudo bem? – É claro que não estava nada bem, seu idiota! Dentre as infinitas frases que poderia construir em língua portuguesa, consegui encontrar a mais comum, porém a mais imprópria para aquele contexto. Fiquei traumatizado desde então, medindo minhas palavras, pisando em ovos (Bruno Coutinho licenciando).

Todos nós trazemos internalizada uma representação de “hospital”. Podemos conhecer o hospital por experiência de ter ali feito tratamentos, ou passado por internação, ou ter visitado algum parente ou amigo internado, mas, mesmo que nunca tenhamos passado por tais experiências, o hospital, salvo quando se trata de maternidade, configura um espaço de doença e de morte. Por esta razão, em uma primeira aproximação do licenciando com aquele ambiente, percebe-se nele uma grande preocupação em injetar alegria como “tratamento” inicial, como se esse fosse o único objetivo de nossa intervenção.

É bom ressaltar que muitos pais participavam também, riam, ouviam as histórias e faziam parte daquele universo. Cantamos várias vezes com as crianças, muitas vezes elas sugeriam músicas, e apesar do sofrimento delas, acredito que tenhamos por alguns instantes amenizado suas dores... Muitas vezes íamos embora com o sorriso estampado no rosto de todos, tanto das crianças, quanto dos pais, onde através do gesto de adeus, nos faziam ter a certeza de que havíamos cumprido nossa missão (Marco Antônio Viestel – licenciando).

Um valor para o teatro ali ficou claro: o poder de deixar as pessoas felizes ou pelo menos mudar seu estado emocional (Ruidglan Barros de Souza – licenciando).

Para mim ficou a sensação de ter contribuído para que as crianças experenciassem situações de alegria, atenuando com isso a sua dor... fugindo da dura realidade e se tornando um pouco feliz (Wesley Cardoso – licenciando).

É legal ver a reação das mães – alegria, muita atenção, gratidão. Parece um momento de alívio, de suspensão (Maria Cecília Hoeltzlicencianda).

Lembro-me muito bem quando tivemos que apresentar uma vez na porta do quarto de uma criança que, por causa de seu estado extremamente debilitado, foi impedida de sair para assistir à encenação. Uma criança triste com máscara de oxigênio que, por um momento, sorriu e viveu de novo (Altair de Souza Junior – licenciando).

E nós podemos ver o encanto no rosto das crianças, e não só delas, dos familiares e funcionários também. Alcançamos todas as idades com aquele recorte de felicidade colado em um universo de tristeza preponderante (Luciana Tosta – licencianda).

O “recorte” que o teatro configura dentro do espaço de dor que caracteriza o hospital causa uma “suspensão” no espaço-tempo hospitalar, provocando uma transformação. Este aspecto de mudança de um estado de sofrimento, apatia e tristeza para um estado de alegria é o que mais atinge e mobiliza os licenciandos em sua participação. Porém a nossa proposta não é somente levar alegria ao hospital e isto, gradativamente, os licenciandos vão percebendo à medida que as intervenções vão sendo preparadas e avaliadas. Muitas questões surgem a partir daí e, desta maneira, uma reflexão sobre a realidade hospitalar vai sendo realizada por meio da leitura de literatura específica e de esclarecimentos dos profissionais de saúde, ao mesmo tempo em que as discussões e experiências sobre as formas teatrais se intensificam.

Volto a frisar que nossa intervenção não pode se limitar a distrair os pacientes, do contrário corremos o risco de sermos realmente o que aquela senhora disse – pessoas com a função de enrolar os pacientes para que eles não conheçam as falhas do sistema de saúde brasileiro. O limite entre o que fazemos e a função de mascarar a realidade é muito tênue, se não discutirmos constantemente sobre esta questão, fatalmente incorreremos neste erro (Max Pereira Rocha – licenciando).3

Alguns licenciandos, logo no início das intervenções no hospital, avaliaram suas funções e a função do teatro naquele espaço, percebendo que não se encontravam ali para meramente distrair os pacientes. Tal fato me fez reforçar, junto a eles, os propósitos do projeto que tem como objetivo principal levar o jogo teatral ao espaço hospitalar no sentido de auxiliá-lo em um processo de humanização. Juntamente a este objetivo aparecem objetivos mais específicos que são: tornar o hospital um campo de estágio para os licenciandos e levar os funcionários e pacientes a fazerem e apreciarem o jogo teatral. Ao lado destes, considero relevante a criação de formas teatrais que sejam induzidas por aquele espaço e possam, de certa forma, causar algum impacto nas maneiras de ver e conviver com e no hospital. Dentro destes objetivos encontramos um aspecto muito importante, que é o de auxiliar a proposta hospitalar na construção da cidadania de seus funcionários e usuários, pois não se pode pensar em humanização sem pensarmos em uma reflexão e tomadas de posição diante dos direitos e deveres dos indivíduos. São todos estes objetivos em conjunto que caracterizam nosso projeto como uma proposta teatral-pedagógica, inserida naquele espaço determinado.

Justamente por se tratar de uma proposta teatral, seu objetivo não se restringe à simples provocação da alegria e, quanto a isto, deve-se indagar: é a intervenção que é alegre em sua temática e realização ou ela provoca um prazer que é identificado como sendo alegria?

Em algumas intervenções houve, deliberadamente, o objetivo de levar a alegria e o riso para o hospital. As intervenções utilizando-se de histórias infantis em que incluíamos algumas situações cômicas são exemplos disso. Pode-se dizer também que as cores e músicas utilizadas no Romeu e Julieta, no Retalhinho Branco, no Lúcia-já-vou-indo e na Festa no Céu, entre outros, também criaram um clima de alegria, pois uma das intenções, nestes trabalhos, era a de quebrar a monotonia do espaço com cores, formas e sons contrastantes. Entretanto seria a alegria o que provocou o pedido de uma menina acidentada e que não falava com ninguém desde então para ver de novo a encenação da Margarida Friorenta? E a Estrela Misteriosa que, na primeira apresentação, fez com que as crianças quisessem vê-la inúmeras vezes e, no ano seguinte, provocou lágrimas comovidas na mãe de um menino acamado? E a apresentação de Lúcia-já-vou-indo que, invariavelmente, provoca lágrimas nas mães-acompanhantes?

Melhor será definir este sentimento como prazer – o prazer da fruição – que vai aparecer de formas variadas, dependendo daquilo que se apresenta, daquele para quem se apresenta e da forma como é recebido.

Ubersfeld, em Lire le Théâtre II (1996),  analisa o prazer na recepção teatral, partindo de alguns pressupostos com os quais julgo importante dialogar para estabelecer uma reflexão sobre este aspecto do trabalho.

O primeiro pressuposto é que o prazer teatral não é um prazer solitário porque ele se reflete e repercute sobre todos os assistentes, quer dizer, a manifestação dos outros espectadores – o choro, o riso, o silêncio e outros – influencia cada um dos assistentes. Eu diria que o compartilhar não só com os atores, mas com os outros assistentes é importante porque refaz uma noção de conjunto. Não é meramente a reunião de pessoas diversas num determinado lugar, mas um conjunto de pessoas que se manifesta perante algo que se lhe apresenta.

Observei, uma vez, o empenho de uma mãe para levar seu filho que estava ainda no soro e se reabilitando de uma cirurgia, até o saguão para assistir à intervenção. Apesar de eu dizer a ela que, se ele não pudesse se deslocar, faríamos a encenação para ele no quarto, ela não desistiu e me disse que achava muito importante que ele assistisse com as outras crianças, porque ele estava há muito tempo isolado. Seria bom para ele, completou, que se sentisse de novo igual aos outros. Assistir à encenação em conjunto com as outras crianças, traria novamente a noção de conjunto, a noção de pertencimento ao grupo que a mãe achava que a intervenção demorada havia rompido.

Daí porque, mesmo quando apresentamos para uma criança isolada no quarto, ampliamos de várias formas o contato com ela. Eu mesma procuro, ficando a seu lado, dividir com ela a recepção. São formas de tentar preencher a falta da correspondência, da cumplicidade e da divisão de atenções que o compartilhar com outros a apresentação oferece.

Na apresentação da Festa no Céu para um menino que se encontrava só na enfermaria aconteceu que, inicialmente, ele não conseguia olhar diretamente para a cena, olhava de rabo de olho, confirmando uma inibição que já conhecíamos de outras experiências. Inibição causada pelo fato de ser espectador único. Neste caso, devo ressaltar que ele queria muito participar da intervenção. As licenciandas, aos poucos, conseguiram transformar a situação, deixando-o mais à vontade.

Deve-se enfatizar, portanto, a relação entre o prazer da fruição e as relações que estabelecem entre si os vários fruidores, o que influencia a qualidade da recepção.

O segundo pressuposto de Anne Ubersfeld trata da questão de o prazer teatral apresentar em si mesmo uma multiplicidade. Ele se constitui de vários tipos de prazer diferentes, às vezes, até contraditórios.

Para Ubersfeld, o prazer é duplo por natureza. Primeiro porque é o prazer da convocação de uma ausência, quer dizer, o teatro traz para o aqui e o agora, presentifica, elementos que estariam fora dali. Segundo, o prazer é a contemplação de um real cênico que é vivido por pessoas de carne e osso, que se apresentam em sua materialidade (1996: p. 274).

O teatro, ao presentificar materialmente o que está ausente, abre, no espaço do hospital, a perspectiva de trazer para ali todas as possibilidades inimagináveis de lugares, tempos, ações, personagens, materiais, de forma viva e concreta. O jogo teatral ali jogado provoca, nos que o assistem e naqueles que atuam, o desejo de construir realidades em que possam trabalhar as ausências que lhes são significativas, configurando-as como realidades de jogo. O jogo teatral enseja a vontade de viver outras espacialidades e temporalidades que lhes proporcionem os afetos e contatos desejados, ou que criem desejos até então desconhecidos ou mesmo evitados. O prazer, para Ubersfeld, estaria “neste ir e vir entre o sentimento de uma falta e o jogo de uma presença”, porque, explica, “o prazer do espectador não é nunca uma recepção passiva: ele se relaciona a uma atividade, a uma série de atividades em que ele está mais ou menos investido” (1996: p. 274).

Um prazer que vimos acontecer inúmeras vezes, quando se tratava de apresentações para crianças, e que já destacamos e comentamos no primeiro capítulo, foi o da repetição. O desejo de repetição surgia tanto com histórias que as crianças não conheciam, como com aquelas que elas conheciam de cor, por exemplo: os contos de fada. Walter Benjamin, no artigo Brinquedos e Jogos (1984), considera fundamental que todo estudo sobre o jogo parta daquilo que denomina lei da repetição, porque a repetição, para ele, “rege a totalidade do mundo do brinquedo” – é aquilo que mais alegra a criança. (1984: p. 74) Trata-se do “quero ver de novo” expresso pela pequena paciente após a apresentação da Margarida Friorenta.

O gosto da criança pela repetição estaria, segundo Benjamin, na vontade de saborear, com intensidade renovada, o domínio e o triunfo sobre um “poder fazer” e um “saber fazer” perante a realidade. Ações consideradas primordiais na vida humana, como a perseguição, a preservação e a competição aparecem nos jogos infantis em forma de brincadeira. A repetição e a possibilidade de iniciar a experiência sempre de novo dão à criança a confiança e a sensação de ser senhora de si.

Este desejo da criança de repetir muitas e muitas vezes o jogo, de recriar o vivido, para Benjamin, está na raiz de todo hábito que é adquirido na vida, porque “a essência do brincar não é um ‘fazer como se’, mas um ‘fazer sempre de novo’, transformação da experiência mais comovente em hábito” (1984: p. 75).

As ações repetidas, marcadas pelos ritmos primordiais vivenciados nos jogos pelas crianças, tornam-se, muitas vezes, hábitos na vida adulta, sendo estes, portanto, “formas petrificadas e irreconhecíveis de nossa primeira felicidade, de nosso primeiro terror” (1984: p. 75). Os sentimentos experimentados pelas crianças em seus jogos permaneceriam nos hábitos, mesmo não sendo reconhecidos pelos adultos. Benjamin adverte que, em todo hábito, “sobrevive um restinho de jogo até o final” (1984: p. 75).

Além do prazer da repetição, percebi o prazer que as crianças sentiam com as vozes dos personagens, com os gestuais, com as movimentações dos bonecos. É um prazer diferente da simples narração porque, nestes casos, há também o prazer da cena, que coloca em jogo as ações humanas.

Ubersfeld fala deste prazer – o da imitação – que “repousa no desejo de ver imitar o mundo com recursos limitados, artesanais do fazer humano” (1996: p. 276). Acrescenta que este prazer se refere a um prazer infantil que persiste no adulto.

A criança, em seu desenvolvimento, necessita imitar o adulto para se apropriar da realidade, por isso ela joga primeiro com os objetos e, depois, interpretando papéis. No jogo, a criança, sem riscos ou perigos, pode realizar ações que não poderia na realidade por não ter ainda condições de executá-las. Este desejo de imitar tem uma continuidade na idade adulta e transparece no prazer de ver e, assim, se identificar com a imitação da vida.

O prazer do teatro vai, todavia, muito além da imitação, ele se faz igualmente pelo prazer de decodificar seus signos sonoros e visuais e de construir uma imagem cênica. É um prazer que se relaciona ao próprio fazer teatral e à descoberta de seus processos de realização.

Guénoun, em O Teatro é Necessário? (2004), ao analisar o teatro contemporâneo, diz que , na atualidade, vai-se ao teatro

com a intenção de que lhe apresentem uma operação de teatralização. O que se que é ver o ‘tornar-se teatro’ de uma ação, de uma história, de um papel. Os espectadores de teatro, a fórmula é talvez menos boba do que parece, vão ao teatro para ver teatro... Ver ‘como fazem’ aqueles que ali se apresentam (GUÉNOUN, 2004: p. 139).

O teatro contemporâneo seria, então, aquele que se mostra no seu fazer e nisto se assemelha ao jogo infantil. A criança imita por uma necessidade, mas, em momento algum, ela confunde o jogo com a realidade e, a todo instante, explicita os elementos do jogo. Joga com os objetos, com os espaços, transformando-os de acordo com suas necessidades.  O interesse no “como se faz” do teatro manifesta-se muito cedo na criança e aparece em cada intervenção. As crianças sentem-se logo atraídas, por exemplo, pelos bonecos e sua manipulação. É o prazer pelo jogo que o teatro oferece aos que o assistem e aos que o praticam. As crianças, pelo que se pode observar, querem mais do que assistir, querem conhecer, vivenciar, praticar o jogo e todas as suas artimanhas.

Por tudo isto que foi exposto, as intervenções teatrais realizadas no hospital priorizaram, desde o início, o exercício do jogo, porque partimos da hipótese de que esta seria a metodologia mais indicada para as experimentações a serem realizadas naquele espaço e para que alcançássemos os objetivos propostos. A escolha se deu pelas características próprias do jogo: sua flexibilidade, dinamismo, possibilidade de ocupar espaços variados e, principalmente, a capacidade de estabelecer inter-relações.

A instauração, portanto, do espaço teatral no espaço hospitalar partiu do pressuposto de que o jogo, ali realizado, viria suprir as necessidades infantis, estas evidentes, e aquelas dos adultos, em grande parte abafadas e reprimidas, transformando-os em parceiros, em jogadores. O jogo teatral seria um convite para transformar o espaço hospitalar em um espaço cênico em que todos se incluiriam por adesão. Adesão que tivemos, desde o início, dos pacientes e dos acompanhantes e para a qual, aos poucos, os profissionais do hospital vão sendo sensibilizados.

Referências:

BENJAMIN, Walter. Reflexões: A criança, o brinquedo, a educação. São Paulo: Summus, 1984.

GUÉNOUN, Denis. O Teatro é Necessário? São Paulo: Perspectiva, 2004.

UBERSFELD, Anne. Lire le Théâtre II. Paris: Gallimard, 1996.

Livros infanto-juvenis citados:

ALMEIDA, Fernanda Lopes. A Margarida Friorenta. São Paulo: Ática, 1980.

PENTEADO, Maria Heloisa. Lúcia-já-vou-indo. São Paulo: Ática, 1978.

___ A Estrela Misteriosa. São Paulo: Paulus, 1985.

PORTILHO, Maria Helena. Retalhinho Branco. Rio de Janeiro: Conquista, 1975.

ROCHA, Ruth. Romeu e Julieta. São Paulo: Ática, 2004.

 

 



Notas

1 Extraído da tese de doutorado Cruzando Espaços e Olhares: O Teatro no Hospital, defendida em 2005, de minha autoria.

2 Há duas formas de intervenção realizadas pelo projeto: Oficinas Teatrais e Apresentações Interativas. Este artigo refere-se a segunda forma de intervenção que consiste em apresentações teatrais interativas, baseadas em histórias da literatura infanto-juvenil, realizadas por  atores (os licenciandos), utilizando-se de bonecos e dedoches e de músicas compostas, executadas e interpretadas pelo próprio grupo.

3 O licenciando refere-se a um comentário, ouvido por ele no corredor do hospital, de uma paciente no início de uma intervenção teatral.

LUCIA HELENA DE FREITAS (GYATA) é professora adjunta da Escola de Teatro da UNIRIO. Formada em Português-Literatura pela UERJ, em Interpretação Teatral pela UNIRIO; é mestre em Educação pela UERJ e doutora em Teatro pela UNIRIO. Desenvolve o projeto de pesquisa e de extensão, denominado O Hospital Como Universo Cênico, que promove atividades teatrais em um hospital público do Rio de Janeiro, desde 1999.

LUCIA HELENA DE FREITAS (GYATA) is an Adjunct Professor of the School of Theater of UNIRIO. She is graduated in Portuguese and Literature by UERJ, in Theater Acting by UNIRIO, Master in Education by UERJ and is a Doctor in Theater by UNIRIO. She develops the research and extension projects named “The Hospital as a Scenic Universe” which furthers theather activities at the Hospital da Lagoa (RJ), since 1999. She is the directress of the Theater Company Bandejas Contadoras de Histórias that acts in the public hospitals of Rio de Janeiro.