(UNIRIO)
Resumo
Este artigo é uma análise dos efeitos de inserção do jogo teatral no
espaço hospitalar público, a partir do enfoque de um projeto universitário de
extensão realizado em uma parceria entre o Hospital da Lagoa/RJ e a Escola de
Teatro da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO. A análise
desta experiência recai sobre as formas e distinções possíveis de se conceber o
prazer percebido na recepção das intervenções teatrais, por parte dos
pacientes, dentro de um espaço de sofrimento – o hospital.
Palavras-chave | ensino do teatro | teatro educação | teatro e saúde | jogo teatral
This article analyses the effects of
theatrical play insertion in a nosocomial public
space from the view of a university extension project fulfilled in a
partnership between the Hospital of the Lagoa/RJ and
the School of Theater of the Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro, UNIRIO. The analysis of this experience is based in
the ways and distinct manners of conceiving pleasure by patients at the time of
reception of the theatrical interventions, while in a space of suffering – the
hospital.
Keywords | theatre
pedagogy | theatre education | theatre and health | theatre games
Ao iniciarmos as
intervenções teatrais,2 por meio do
projeto de pesquisa e extensão “O Hospital Como Universo Cênico” no Hospital da
Lagoa (RJ), esbarramos com uma série de questões que advinham do espaço físico
e institucional, da disposição dos licenciandos do Curso de Graduação em Teatro
da UNIRIO perante aquele ambiente, da diversidade de reações ao trabalho –
proveniente de funcionários e pacientes – e da busca de formas teatrais que,
ali, pudessem repercutir de forma favorável aos objetivos de criação de um
espaço teatral que, interferindo nos rituais estabelecidos, auxiliassem os
esforços dos profissionais interessados na humanização dos serviços hospitalares.
O hospital, por se caracterizar como um
espaço onde se destacam o sofrimento e a morte, institui uma seriedade que
contamina todos que ali trabalham ou os que para ali se encaminham em busca de
tratamentos. Estas seriedade e gravidade, misto de responsabilidade e frieza,
transparecem imediatamente quando se adentra o hospital. Os licenciandos sentem
logo esta atmosfera pesada e percebem o peso da responsabilidade em criar ali
um espaço de teatralidade.
Fazer de um hospital, um lugar para o qual eu deveria levar um pouco de alegria, distração, esperança e amor, foi algo bastante diferente, uma vez que suas paredes são frias e, se você não estiver preparado psicologicamente e a fim de ser diferente, de transformar aquele espaço, você pode, sem perceber se contagiar e sair de lá destruído, percebendo o quanto o ser humano é frágil (Marco Antônio Viestel – licenciando).
A experiência no hospital nos aproximou de uma realidade que só tomamos
contato nos momentos mais difíceis da vida, quando temos problemas de saúde ou
quando isso ocorre a alguém que está próximo de nós. Isso faz do hospital um
lugar ‘sério’ onde devemos agir cautelosamente. É justamente essa ‘atmosfera
séria’ do hospital o nosso ponto de partida, o que nos estimula a levar a este
ambiente um pouco de leveza e alegria (Carlos Gracie
–
licenciando).
Logo na primeira reunião em que participei, discutimos o que seria o
trabalho dentro de um espaço tão específico como o hospital. Não estaríamos
dentro de uma escola, em uma classe com a faixa etária mais ou menos definida
ou com crianças saudáveis para jogar. Estaríamos num espaço com estruturas
bastante peculiares, com regras de segurança a serem respeitadas, com pessoas
que iam desde a infância até a velhice, com pessoas em estados físico e psicológico
também muito distintos. Algumas a espera de um exame, outras a espera de um
tratamento, outras a espera até mesmo da morte (Carlos Eduardo Menezes – licenciando).
Chegava para o meu primeiro dia de estágio na pediatria do Hospital da
Lagoa (pavilhão das crianças com câncer) com diversas dúvidas: será que daria
conta da minha responsabilidade pedagógica? Conseguiria resistir ao impacto
emocional da situação ou ficaria aparentemente impassível ao contexto dramático
daquele lugar? Será que nosso trabalho seria bem recebido? Enfim, apesar de
tudo queria muito aquela experiência (Cláudia Petrina
–
licenciando).
Parece mentira, mas se eu disser que tenho medo de hospital você
acreditaria? Por incrível que pareça hospital sempre me foi algo assustador.
Quando pequena, freqüentava mensalmente um hospital, pois meu pai, por ser
diabético, vivia internado. E aquele cheiro típico de hospital, me provocava
arrepios, não importava quantas vezes eu fosse sempre parecia a primeira vez. E
depois de muito tempo sem entrar em qualquer hospital, encontrei-me no maior em
que já havia estado. O Hospital da Lagoa era bem maior do que parecia. As alas
parecem não ter fim. Tudo era uma imensidão de quartos e portas. Mas tudo se
tornou bem menor com o passar do tempo. E, ao invés do ambiente hostil do qual
me lembrava, deparei-me com um lugar repleto de crianças, passível a mudanças,
a espera de um movimento, um olhar (Mariana Consoli
– licencianda).
Eu estava um pouco apreensiva com o momento em que iríamos a campo...
Eu estava com medo de fraquejar, de morrer de pena daquela situação tão triste
e deixar que minha fragilidade se tornasse aparente ou então me deprimisse no
sentido de uma revolta que levantasse questões do tipo: Por que isso acontece
com crianças, com tanto bandido solto, com tanta gente fazendo o mal
impunemente? (Luciana Tosta – licencianda).
O primeiro e principal questionamento para o qual ainda não tenho
resposta versa sobre a questão da abordagem. Como entrar num ambiente tão tenso
como um quarto de hospital? O que dizer para pessoas que talvez não tenham
esperanças, que talvez não tenham outro futuro a não ser a morte e a
deficiência? A despeito de todas estas questões minha primeira fala para uma
criança foi: - Tudo bem? – É claro que não estava nada bem, seu idiota! Dentre
as infinitas frases que poderia construir em língua portuguesa, consegui
encontrar a mais comum, porém a mais imprópria para aquele contexto. Fiquei
traumatizado desde então, medindo minhas palavras, pisando em ovos (Bruno Coutinho – licenciando).
Todos nós
trazemos internalizada uma representação de “hospital”. Podemos conhecer o
hospital por experiência de ter ali feito tratamentos, ou passado por
internação, ou ter visitado algum parente ou amigo internado, mas, mesmo que
nunca tenhamos passado por tais experiências, o hospital, salvo quando se trata
de maternidade, configura um espaço de doença e de morte. Por esta razão, em
uma primeira aproximação do licenciando com aquele ambiente, percebe-se nele
uma grande preocupação em injetar alegria como “tratamento” inicial, como se
esse fosse o único objetivo de nossa intervenção.
É bom ressaltar que muitos pais participavam também, riam, ouviam as histórias e faziam parte daquele universo. Cantamos várias vezes com as crianças, muitas vezes elas sugeriam músicas, e apesar do sofrimento delas, acredito que tenhamos por alguns instantes amenizado suas dores... Muitas vezes íamos embora com o sorriso estampado no rosto de todos, tanto das crianças, quanto dos pais, onde através do gesto de adeus, nos faziam ter a certeza de que havíamos cumprido nossa missão (Marco Antônio Viestel – licenciando).
Um valor para o teatro ali ficou claro: o poder de deixar as pessoas felizes ou pelo menos mudar seu estado emocional (Ruidglan Barros de Souza – licenciando).
Para mim ficou a sensação de ter contribuído para que as crianças experenciassem situações de alegria, atenuando com isso a sua dor... fugindo da dura realidade e se tornando um pouco feliz (Wesley Cardoso – licenciando).
É legal ver a reação das mães – alegria, muita atenção, gratidão. Parece um momento de alívio, de suspensão (Maria Cecília Hoeltz – licencianda).
Lembro-me muito bem quando tivemos que apresentar uma vez na porta do quarto de uma criança que, por causa de seu estado extremamente debilitado, foi impedida de sair para assistir à encenação. Uma criança triste com máscara de oxigênio que, por um momento, sorriu e viveu de novo (Altair de Souza Junior – licenciando).
E nós podemos ver o encanto no rosto das crianças, e não só delas, dos familiares e funcionários também. Alcançamos todas as idades com aquele recorte de felicidade colado em um universo de tristeza preponderante (Luciana Tosta – licencianda).
O “recorte” que o
teatro configura dentro do espaço de dor que caracteriza o hospital causa uma
“suspensão” no espaço-tempo hospitalar, provocando uma transformação. Este
aspecto de mudança de um estado de sofrimento, apatia e tristeza para um estado
de alegria é o que mais atinge e mobiliza os licenciandos
em sua participação. Porém a nossa proposta não é somente levar alegria ao
hospital e isto, gradativamente, os licenciandos vão
percebendo à medida que as intervenções vão sendo preparadas e avaliadas.
Muitas questões surgem a partir daí e, desta maneira, uma reflexão sobre a
realidade hospitalar vai sendo realizada por meio da leitura de literatura
específica e de esclarecimentos dos profissionais de saúde, ao mesmo tempo em
que as discussões e experiências sobre as formas teatrais se intensificam.
Volto a frisar que nossa intervenção não pode se limitar a distrair os pacientes, do contrário corremos o risco de sermos realmente o que aquela senhora disse – pessoas com a função de enrolar os pacientes para que eles não conheçam as falhas do sistema de saúde brasileiro. O limite entre o que fazemos e a função de mascarar a realidade é muito tênue, se não discutirmos constantemente sobre esta questão, fatalmente incorreremos neste erro (Max Pereira Rocha – licenciando).3
Alguns licenciandos, logo no início das intervenções no hospital,
avaliaram suas funções e a função do teatro naquele espaço, percebendo que não
se encontravam ali para meramente distrair os pacientes. Tal fato me fez
reforçar, junto a eles, os propósitos do projeto que tem como objetivo
principal levar o jogo teatral ao espaço hospitalar no sentido de auxiliá-lo em
um processo de humanização. Juntamente a este objetivo aparecem objetivos mais
específicos que são: tornar o hospital um campo de estágio para os licenciandos e levar os funcionários e pacientes a fazerem
e apreciarem o jogo teatral. Ao lado destes, considero relevante a criação de
formas teatrais que sejam induzidas por aquele espaço e possam, de certa forma,
causar algum impacto nas maneiras de ver e conviver com e no hospital. Dentro
destes objetivos encontramos um aspecto muito importante, que é o de auxiliar a
proposta hospitalar na construção da cidadania de seus funcionários e usuários, pois
não se pode pensar em humanização sem pensarmos em uma reflexão e tomadas de
posição diante dos direitos e deveres dos indivíduos. São todos estes objetivos
em conjunto que caracterizam nosso projeto como uma proposta
teatral-pedagógica, inserida naquele espaço determinado.
Justamente por se
tratar de uma proposta teatral, seu objetivo não se restringe à simples
provocação da alegria e, quanto a isto, deve-se indagar: é a intervenção que é
alegre em sua temática e realização ou ela provoca um prazer que é identificado
como sendo alegria?
Em algumas
intervenções houve, deliberadamente, o objetivo de levar a alegria e o riso para
o hospital. As intervenções utilizando-se de histórias infantis em que
incluíamos algumas situações cômicas são exemplos disso. Pode-se dizer também
que as cores e músicas utilizadas no Romeu e Julieta, no Retalhinho
Branco, no Lúcia-já-vou-indo e na Festa
no Céu, entre outros, também criaram um clima de alegria, pois uma das
intenções, nestes trabalhos, era a de quebrar a monotonia do espaço com cores,
formas e sons contrastantes. Entretanto seria a alegria o que provocou o pedido
de uma menina acidentada e que não falava com ninguém desde então para ver de
novo a encenação da Margarida Friorenta? E a Estrela Misteriosa
que, na primeira apresentação, fez com que as crianças quisessem vê-la inúmeras
vezes e, no ano seguinte, provocou lágrimas comovidas na mãe de um menino
acamado? E a apresentação de Lúcia-já-vou-indo que, invariavelmente, provoca lágrimas nas
mães-acompanhantes?
Melhor será
definir este sentimento como prazer – o prazer da fruição – que vai aparecer de
formas variadas, dependendo daquilo que se apresenta, daquele para quem se
apresenta e da forma como é recebido.
Ubersfeld, em Lire le Théâtre II (1996), analisa o prazer na recepção teatral,
partindo de alguns pressupostos com os quais julgo importante dialogar para
estabelecer uma reflexão sobre este aspecto do trabalho.
O primeiro pressuposto é que o prazer teatral não é um
prazer solitário porque ele se reflete e repercute sobre todos os assistentes,
quer dizer, a manifestação dos outros espectadores – o choro, o riso, o
silêncio e outros – influencia cada um dos assistentes. Eu diria que o
compartilhar não só com os atores, mas com os outros assistentes é importante
porque refaz uma noção de conjunto. Não é meramente a reunião de pessoas
diversas num determinado lugar, mas um conjunto de pessoas que se manifesta
perante algo que se lhe apresenta.
Observei, uma vez, o empenho de uma mãe para levar seu
filho que estava ainda no soro e se reabilitando de uma cirurgia, até o saguão
para assistir à intervenção. Apesar de eu dizer a ela que, se ele não pudesse
se deslocar, faríamos a encenação para ele no quarto, ela não desistiu e me
disse que achava muito importante que ele assistisse com as outras crianças,
porque ele estava há muito tempo isolado. Seria bom para ele, completou, que se
sentisse de novo igual aos outros. Assistir à encenação em conjunto com as
outras crianças, traria novamente a noção de conjunto, a noção de pertencimento
ao grupo que a mãe achava que a intervenção demorada havia rompido.
Daí porque, mesmo
quando apresentamos para uma criança isolada no quarto, ampliamos de várias
formas o contato com ela. Eu mesma procuro, ficando a seu lado, dividir com ela
a recepção. São formas de tentar preencher a falta da correspondência, da
cumplicidade e da divisão de atenções que o compartilhar com outros a
apresentação oferece.
Na apresentação
da Festa no Céu para um menino que se encontrava só na enfermaria
aconteceu que, inicialmente, ele não conseguia olhar diretamente para a cena,
olhava de rabo de olho,
confirmando uma inibição que já conhecíamos de outras experiências. Inibição
causada pelo fato de ser espectador único. Neste caso, devo ressaltar que ele
queria muito participar da intervenção. As licenciandas, aos poucos,
conseguiram transformar a situação, deixando-o mais à vontade.
Deve-se
enfatizar, portanto, a relação entre o prazer da fruição e as relações que
estabelecem entre si os vários fruidores, o que
influencia a qualidade da recepção.
O segundo
pressuposto de Anne Ubersfeld trata da questão de o prazer teatral apresentar
em si mesmo uma multiplicidade. Ele se constitui de vários tipos de prazer
diferentes, às vezes, até contraditórios.
Para Ubersfeld, o prazer é duplo por natureza. Primeiro
porque é o prazer da convocação de uma ausência, quer dizer, o teatro traz para
o aqui e o agora, presentifica, elementos que
estariam fora dali. Segundo, o prazer é a contemplação de um real cênico que é
vivido por pessoas de carne e osso, que se apresentam em sua materialidade
(1996: p. 274).
O teatro, ao presentificar materialmente o que está
ausente, abre, no espaço do hospital, a perspectiva de trazer para ali todas as
possibilidades inimagináveis de lugares, tempos, ações, personagens, materiais,
de forma viva e concreta. O jogo teatral ali jogado provoca, nos que o assistem
e naqueles que atuam, o desejo de construir realidades em que possam trabalhar
as ausências que lhes são significativas, configurando-as como realidades de
jogo. O jogo teatral enseja a vontade de viver outras espacialidades e
temporalidades que lhes proporcionem os afetos e contatos desejados, ou que
criem desejos até então desconhecidos ou mesmo evitados. O prazer, para
Ubersfeld, estaria “neste ir e vir
entre o sentimento de uma falta e o jogo de uma presença”, porque, explica, “o prazer do espectador não é nunca uma recepção passiva: ele se
relaciona a uma atividade, a uma série de atividades em que ele está mais ou
menos investido” (1996:
p. 274).
Um prazer que
vimos acontecer inúmeras vezes, quando se tratava de apresentações para
crianças, e que já destacamos e comentamos no primeiro capítulo, foi o da
repetição. O desejo de repetição surgia tanto com histórias que as crianças não
conheciam, como com aquelas que elas conheciam de cor, por exemplo: os contos
de fada. Walter Benjamin, no artigo Brinquedos e Jogos (1984), considera fundamental que
todo estudo sobre o jogo parta daquilo que denomina lei da repetição,
porque a repetição, para ele, “rege a
totalidade do mundo do brinquedo” – é aquilo que mais alegra a criança.
(1984: p. 74) Trata-se do “quero ver de novo” expresso pela pequena paciente
após a apresentação da Margarida Friorenta.
O gosto da
criança pela repetição estaria, segundo Benjamin, na vontade de saborear, com
intensidade renovada, o domínio e o triunfo sobre um “poder fazer” e um “saber
fazer” perante a realidade. Ações consideradas primordiais na vida humana, como
a perseguição, a preservação e a competição aparecem nos jogos infantis em
forma de brincadeira. A repetição e a possibilidade de iniciar a experiência
sempre de novo dão à criança a confiança e a sensação de ser senhora de si.
Este desejo da
criança de repetir muitas e muitas vezes o jogo, de recriar o vivido, para
Benjamin, está na raiz de todo hábito que é adquirido na vida, porque “a essência do brincar não é um ‘fazer como se’,
mas um ‘fazer sempre de novo’, transformação
da experiência mais comovente em hábito” (1984: p. 75).
As ações
repetidas, marcadas pelos ritmos primordiais vivenciados nos jogos pelas
crianças, tornam-se, muitas vezes, hábitos na vida adulta, sendo estes,
portanto, “formas petrificadas e
irreconhecíveis de nossa primeira felicidade,
de nosso primeiro terror” (1984: p. 75). Os sentimentos experimentados
pelas crianças em seus jogos permaneceriam nos hábitos, mesmo não sendo
reconhecidos pelos adultos. Benjamin adverte que, em todo hábito, “sobrevive um restinho de jogo até o final” (1984: p. 75).
Além do prazer da
repetição, percebi o prazer que as crianças sentiam com as vozes dos
personagens, com os gestuais, com as movimentações dos bonecos. É um prazer
diferente da simples narração porque, nestes casos, há também o prazer da cena,
que coloca em jogo as ações humanas.
Ubersfeld fala
deste prazer – o da imitação – que “repousa
no desejo de ver imitar o mundo com recursos limitados, artesanais do fazer humano” (1996: p.
276). Acrescenta que este prazer se refere a um prazer infantil que persiste no
adulto.
A criança, em seu
desenvolvimento, necessita imitar o adulto para se apropriar da realidade, por
isso ela joga primeiro com os objetos e, depois, interpretando papéis. No jogo,
a criança, sem riscos ou perigos, pode realizar ações que não poderia na
realidade por não ter ainda condições de executá-las. Este desejo de imitar tem
uma continuidade na idade adulta e transparece no prazer de ver e, assim, se identificar
com a imitação da vida.
O prazer do
teatro vai, todavia, muito além da imitação, ele se faz igualmente pelo prazer
de decodificar seus signos sonoros e visuais e de construir uma imagem cênica.
É um prazer que se relaciona ao próprio fazer teatral e à descoberta de seus
processos de realização.
Guénoun, em O Teatro
é Necessário? (2004), ao
analisar o teatro contemporâneo, diz que , na atualidade, vai-se ao teatro
com a intenção de que lhe apresentem uma operação de teatralização. O que se que é ver o ‘tornar-se teatro’ de uma ação, de uma história, de um papel. Os espectadores de teatro, a fórmula é talvez menos boba do que parece, vão ao teatro para ver teatro... Ver ‘como fazem’ aqueles que ali se apresentam (GUÉNOUN, 2004: p. 139).
O teatro contemporâneo
seria, então, aquele que se mostra no seu fazer e nisto se assemelha ao jogo
infantil. A criança imita por uma necessidade, mas, em momento algum, ela
confunde o jogo com a realidade e, a todo instante, explicita os elementos do
jogo. Joga com os objetos, com os espaços, transformando-os de acordo com suas
necessidades. O interesse no “como
se faz” do teatro manifesta-se muito cedo na criança e aparece em cada
intervenção. As crianças sentem-se logo atraídas, por exemplo, pelos bonecos e
sua manipulação. É o prazer pelo jogo que o teatro oferece aos que o assistem e aos
que o praticam. As crianças, pelo que se pode observar, querem mais do que
assistir, querem conhecer, vivenciar, praticar o jogo e todas as suas
artimanhas.
Por tudo isto que
foi exposto, as intervenções teatrais realizadas no hospital priorizaram, desde
o início, o exercício do jogo, porque partimos da hipótese de que esta seria a
metodologia mais indicada para as experimentações a serem realizadas naquele
espaço e para que alcançássemos os objetivos propostos. A escolha se deu pelas
características próprias do jogo: sua flexibilidade, dinamismo, possibilidade
de ocupar espaços variados e, principalmente, a capacidade de estabelecer
inter-relações.
A instauração,
portanto, do espaço teatral no espaço hospitalar partiu do pressuposto de que o
jogo, ali realizado, viria suprir as necessidades infantis, estas evidentes, e
aquelas dos adultos, em grande parte abafadas e reprimidas, transformando-os em
parceiros, em jogadores. O jogo teatral seria um convite para transformar o
espaço hospitalar em um espaço cênico em que todos se incluiriam por adesão.
Adesão que tivemos, desde o início, dos pacientes e dos acompanhantes e para a
qual, aos poucos, os profissionais do hospital vão sendo sensibilizados.
Referências:
BENJAMIN, Walter. Reflexões: A criança, o
brinquedo, a educação. São Paulo: Summus, 1984.
GUÉNOUN, Denis. O Teatro é Necessário? São
Paulo: Perspectiva, 2004.
UBERSFELD,
Anne. Lire le Théâtre II. Paris: Gallimard, 1996.
Livros
infanto-juvenis citados:
ALMEIDA, Fernanda Lopes. A Margarida Friorenta. São Paulo:
Ática, 1980.
PENTEADO, Maria Heloisa. Lúcia-já-vou-indo.
São Paulo: Ática, 1978.
___ A Estrela Misteriosa. São Paulo: Paulus,
1985.
PORTILHO, Maria Helena. Retalhinho Branco. Rio de Janeiro: Conquista,
1975.
ROCHA, Ruth. Romeu e Julieta. São Paulo: Ática, 2004.
Notas
1 Extraído da tese de doutorado Cruzando Espaços e Olhares: O Teatro no
Hospital, defendida em 2005, de minha autoria.
2 Há duas formas de intervenção realizadas pelo projeto: Oficinas
Teatrais e Apresentações Interativas. Este artigo
refere-se a segunda forma de intervenção que consiste
em apresentações teatrais interativas, baseadas em histórias da literatura
infanto-juvenil, realizadas por atores (os licenciandos), utilizando-se de bonecos e
dedoches e de músicas compostas, executadas e interpretadas pelo próprio grupo.
3 O licenciando refere-se a um comentário, ouvido por ele no corredor do
hospital, de uma paciente no início de uma intervenção teatral.
LUCIA HELENA DE FREITAS (GYATA) é professora
adjunta da Escola de Teatro da UNIRIO. Formada em Português-Literatura
pela UERJ, em Interpretação Teatral pela UNIRIO; é mestre em Educação pela UERJ
e doutora em Teatro pela UNIRIO. Desenvolve o projeto de pesquisa e de
extensão, denominado O Hospital Como Universo Cênico, que promove
atividades teatrais em um hospital público do Rio de Janeiro, desde 1999.
LUCIA HELENA DE FREITAS (GYATA) is
an Adjunct Professor of the School of Theater of UNIRIO. She is graduated in
Portuguese and Literature by UERJ, in Theater Acting by UNIRIO, Master in
Education by UERJ and is a Doctor in Theater by UNIRIO. She develops the
research and extension projects named “The Hospital as a Scenic Universe” which
furthers theather activities at the Hospital da Lagoa (RJ), since 1999. She is
the directress of the Theater Company Bandejas Contadoras de Histórias that acts in the public hospitals of Rio de
Janeiro.