ENTRE O EFÊMERO E O PROCESSUAL – O ‘NAVEGAR’ COMO HABILIDADE, METÁFORA, TEMA

BETWEEN THE EPHEMERAL AND THE PROCESSUAL – ‘NAVIGATING’ AS SKILL, METAPHOR, THEME

Beatriz Cabral

(UDESC/UFSC)

Resumo

Este artigo focaliza o caráter efêmero e processual do fazer teatral face ao prazer de navegar por espaços, informações e interações múltiplas. O impacto resultante é visto como decorrente quer da transgressão ou da ressonância entre o texto ficcional e o contexto social dos participantes. Uma abordagem metodológica que promova a imersão do aluno no contexto dramático é associada à dimensão enciclopédica do material introduzido e à possibilidade de navegação por espaços e ambientações distintas, ambos como base para o prazer de transformar e re-significar. 

Palavras-chave | teatro: efêmero versus processual | transgressão e ressonância | travessias conceituais e contextuais

Abstract

This article looks at the ephemeral and processual nature of theatre making in face of the pleasure of navigating through multiple spaces, information and interactions. The resulting impact is seen as a consequence either of transgression of conventions and rules or resonance between the fictional text and the social context of the participants. A methodological approach to promote the student's immersion into the dramatic context is associated with the encyclopedic dimension of the material introduced to them and the possibility of navigating through distinct spaces and settings, a basis both to the pleasure of transforming and re-signifying.

Keywords | theatre: ephemeral versus processual | transgress and resonance | conceptual and contextual crossings

 


Prazer de ensinar e aprender, hoje, é o prazer de navegar (emprestando o termo das novas tecnologias), é o prazer da travessia, de encontrar o novo, o diferente.

Na medida em que as novas tecnologias promovem a habilidade para focar, identificar e trilhar o movimento, surge a tendência a deslocar a fixação convencional da representação no tempo e espaço e situá-la no indeterminado e fluído, através da exploração do efêmero e do processual. A conseqüência é a migração por fronteiras e disciplinas, um movimento que leva da representação à transformação, e volta-se à negociação da diferença em vez da afirmação da identidade.

De que maneira o navegar – como habilidade, metáfora, tema – pode ser associado ao teatro contemporâneo, e em decorrência, ao ensino do teatro? Será que o acesso irrestrito a informações não nos leva a trilhar um caminho com o mínimo necessário, onde lutamos para negociar relações com os outros, com o meio ambiente, com nossos próprios sonhos?

A meio caminho na vida,

Me encontrei em uma floresta escura

O caminho certo perdeu-se e desapareceu (Dante, Inferno).

Pode-se argumentar que um dos papéis da arte é permitir que possamos nos perder dentro ou entre diferentes mundos, e lá re-conceitualizar e re-experimentar relações entre nós e os outros: outras pessoas, histórias, práticas, realidades, epistemologias. A capacidade de estar perdido surge como uma possibilidade de encontrar significados que vão além do banal. Usando uma expressão cunhada por Lyotard, uma possibilidade de se tornar um “filósofo” em vez de um “especialista”.

Além disso, se navegar é uma arte de ler e estar aberto para as mudanças contínuas que nos impactam; uma possibilidade de coerência temporária que nos oriente dentro das condições mutáveis à nossa volta – a prática que buscamos é a de explorar as relações emergentes e as formas de responder às topografias perceptuais, cognitivas e informativas que também estão em movimento. 

Em teatro esta prática é proporcionada pelo exercício e fruição da cena. O navegar por diferentes mundos e viver novas relações requer envolvimento, engajamento e imersão. Para tanto, o impacto inicial com a situação a ser explorada é fundamental, e sua forma de medi-lo após o trabalho denota a significação da experiência para os participantes.

O engajamento com uma atividade pressupõe empenho em sua realização; colocar-se a serviço de uma idéia e sua causa – vai além do envolvimento; potencializa-o. A ação ou efeito de envolver-se com uma situação é condição para expressá-la através da arte. E não há como haver envolvimento sem emoção. A própria ação de cativar e atrair, inerentes ao processo de envolvimento, sugere sua dimensão emocional. Considerando-se aqui que há razões para se envolver e engajar em uma situação – parafraseando David Best (1992), em The Rationality of Feeling (Racionalidade dos Sentimentos, e Razão e Sentimentos nas Artes, ainda sem tradução em português) “o sentimento é racional em si; podemos explicar porque gostamos ou deixamos de gostar de alguma coisa” (minha tradução).

Mas, no contexto do ensino de Arte, especialmente no de Teatro, é freqüente observar que envolvimento e engajamento podem diluir-se durante o processo de trabalho. O fato que seu desenvolvimento depende da articulação de desejos e empenho de cada integrante de um grupo com histórias de vida, formação e interesses distintos, mantém o professor em uma corda bamba.

A imersão surge então como um conceito que requer atenção.

[...] ele então se enterrou em seus livros e passou noites lendo do entardecer ao amanhecer, e dias, do amanhecer ao anoitecer [...] e ele penetrou tão fundo em sua imaginação que acreditou que toda a fantasia lida era realidade, e decidiu ... tornar-se cavaleiro errante e viajar ao redor do mundo [...] (Don Quixote de la Mancha).

A história de Don Quixote, lembra Janet Murray (1997), 150 anos após o descobrimento da imprensa, mostra o perigo do poder dos livros para criar um mundo mais real do que a realidade. Uma narrativa envolvente, em livros, cinema, teatro, acontece sempre que sintonizamos com a história com uma intensidade que possa obliterar o mundo a nossa volta.

Ao analisar esta imersão no contexto de ficção, e sua intensificação nos meios eletrônicos, Murray (1997: pp. 97-99) associa o velho desejo de viver uma fantasia aos detalhes enciclopédicos e espaços de navegação que permitem viajar por locações com uma precisão que é prazerosa em si, independentemente do conteúdo da fantasia. Quanto mais elaborado o ambiente de imersão, diz Murray, mais ativa é a participação. O prazer de transformar – poder alterar a forma e sugerir processos pode ser entendido através da metáfora do caleidoscópio. Como salientou Marshall McLuhan, os meios de comunicação no século XX apresentam uma estrutura mosaica em vez de linear. Jornais são compostos por muitas histórias chamando nossa atenção em uma mesma página, filmes são compostos por um mosaico de tomadas individuais, televisão é um mosaico através do controle remoto. Informações com esta forma de mosaico acabaram por criar padrões de pensamento em forma de mosaico – estamos acostumados a observar um jornal sem nos surpreender com este fato, porque aprendemos a receber informações múltiplas com uma simples tomada instantânea. Similarmente, anos como espectadores de cinema nos permitem associar suas imagens descontínuas a um padrão mais amplo de continuidade. Fazemos isto porque sabemos como ler as convenções destes meios.

A autora conclui: o computador apresenta o mosaico espacial da primeira página de um jornal, o mosaico temporal do filme, e o mosaico participativo de um controle remoto. Mas, o mais importante é que ele nos oferece novas formas de dominar esta fragmentação – ferramentas para buscar e rotular os fragmentos a fim de relacioná-los e preservar a sua história, de maneira a poder reconstituí-los (MURRAY: pp. 154-157).

O prazer de “transformar” é central às linguagens artísticas. O aluno faz e apresenta; em teatro, através do próprio corpo. Esta seria uma condição privilegiada para a imersão.  O que torna este envolvimento tão excepcional no ensino do teatro?  Eu diria que são a quantidade e a qualidade das informações à disposição do aluno, ou seja, a matéria prima para nutrir sua imaginação.    Ou seja, a ampliação do repertório. Para que o fazer seja consistente e significativo, o ler e o apreciar também precisam ser.

Uma outra forma de enfrentar esta questão tem sido a busca do impacto inicial com o tema ou situação a ser investigada. A opção pela expressão impacto pretende salientar que seu significado semântico – efeito que uma ação tem sobre determinada situação, processo, ou pessoa – é aqui observado quanto à potencialização desta ação, i.e., quanto à força e pressão empregadas em sua realização.

Montagens realizadas em escolas ou comunidades revelaram o impacto causado nos participantes pelo tratamento dado ao tema e pela forma com que o material foi introduzido ao grupo: a transformação do espaço cotidiano e conseqüente ampliação de novas formas de leitura deste espaço; a parceria entre estudantes de teatro e alunos ou moradores da comunidade; a inclusão de personagens inesperados durante o processo; um texto ou pré-texto que permitisse um novo olhar sobre o tema e o contexto sendo explorados; a ressonância do texto teatral com o contexto histórico e social dos participantes; o ritual como recurso para a expressão das diferenças; o desafio da limitação do tempo; a inclusão de cerimônias densas em espaços alternativos.

Por um lado, a análise destas experiências tem mostrado que impacto está relacionado tanto com transgressão, quanto com ressonância com o contexto real dos participantes. Por outro lado, o impacto da intertextualidade em processo, na construção e apresentação da cena teatral, tanto nos atores quanto nos espectadores, decorre de sua dimensão metafórica. As narrativas que se cruzam nesta intertextualidade resultam da apropriação e transformação de outras narrativas, e como tal, explicitam sua condição de metáforas da maneira pela qual vivemos.

Considerando os aspectos da imersão e do impacto levantados acima, pela perspectiva da pedagogia do teatro, recorremos ao suporte da abordagem de Henri Giroux (1986), para quem a pedagogia crítica implica engajar os participantes com as referências múltiplas que constituem as diferentes linguagens, experiências e códigos culturais. Isto significa educar os alunos não apenas para ler estes códigos criticamente, mas também para aprender os limites de tais códigos, inclusive aqueles que usam para construir suas próprias narrativas e histórias.

Um olhar possível pela perspectiva metodológica

O uso do texto como pré-texto1 para contextualização e desenvolvimento dos jogos teatrais e improvisações é um recurso eficaz na construção da narrativa teatral em grupo, permitindo analogias e ressonâncias com o contexto dos participantes.

O pré-texto responde tanto à necessidade de desconstruir o texto dramático a fim de adaptá-lo às condições e motivações locais, quanto à necessidade de parâmetros artísticos de estrutura e linguagem a fim de transgredir os limites do cotidiano e do ‘já visto’. Trata-se de um procedimento metodológico que permite delimitar as interações dos participantes a partir do cruzamento de fragmentos do texto, narração pelo condutor do processo, e inclusão de histórias de vida através do jogo teatral, possibilitando a identificação do grupo com as situações indicadas, e sua ressonância com o contexto local.

O trabalho físico e mental de descobrir e criar conexões, ressonâncias e narrativas e a subseqüente justaposição e reordenação de materiais criados em outros contextos (fragmentos de texto, objetos, imagens visuais), faz emergir significados abertos a múltiplos níveis de interpretação. A textura da apresentação final se assemelha àquela criada por escultores que vão juntando peças e materiais de origens diversas para compor sua obra. Este fazer teatral é estruturado, mas não de forma linear.  As travessias (transposição de fronteiras e limites) tornam-se o eixo do plano de trabalho.

Estas travessias – conceituais, físicas, imaginárias – decorrem das transferências e deslocamentos provocados pela re-contextualização de técnicas, estratégias, interfaces e inter-relações. Estas interações em novos contextos, com circunstâncias diversas, levam a processos de apropriação e tradução que acabam gerando transformações de conceitos e paradigmas. No contexto do ensino de teatro na escola e/ou comunidade podemos considerar quatro formas de travessia a serem privilegiadas:

Travessia Histórica – da história de vida, da história local, da história do texto, da história da cena. O sentido de transgressão embutido no conceito de travessia é aqui manifesto através do foco na contra-memória e na contra-história – a história não oficial, o outro lado da história, o ponto de vista do outro. Pela perspectiva do espectador, pode-se ainda levantar outras questões: Percorrer cenas que ocorrem em períodos históricos distintos e estão ambientados nos espaços em que aconteceram à época, possibilitaria uma viagem ao passado? Ou a re-interpretação de fatos históricos? Ou a celebração de uma história que passa a representar uma memória coletiva? Potencialmente co-existem as três possibilidades caso se alcance densidade de significação no espaço e lugar.

Travessia Espacial – O trabalho físico e mental de descobrir e criar conexões, ressonâncias e narrativas a partir da justaposição e reordenação do cruzamento espaço – texto – história faz emergir significados abertos a múltiplos níveis de interpretação. Mas, o potencial da re-significação do espaço, em teatro, vai mais longe: cenas e personagens criados em colaboração expandem os limites da subjetividade. Um sujeito coletivo não está ancorado em uma subjetividade individual pré-existente; ao depender das contribuições de muitos sujeitos ele passa a criar um novo referencial e a influenciar o desenvolvimento de ações posteriores deste coletivo.

Travessia Semântica – todos os elementos incluídos no espaço cênico são significantes; estão lá para compor seu significado. Quanto maiores forem os detalhes da situação escolhida como foco para a cena, o número de objetos de cena que identifiquem estes detalhes e sua coerência com as razões e motivações dos personagens, maiores as possibilidades de leitura e densidade de significação. Memórias e histórias de vida, cruzados com os textos dramático e teatral levam à ressonância entre o texto ficcional e o social.

Travessia Social – Cenas e personagens criados em colaboração indicam a dimensão social da significação. Pode-se dizer que fica explicitada a interação insider-outsider; histórias de vida-ficção; espaço-lugar; história-lugar-espaço. As interações inter-culturais, multiculturais e as explorações transculturais apontam para um cruzar de fronteiras e romper de barreiras na arte e na vida.

Para que as várias travessias se integrem é necessária a determinação de explicitar tensões, ambigüidades e contradições. Como lembra Philip Taylor, “inovar em teatro e educação implica enfrentar riscos, assumir diferenças e entrar no reino do desconhecido” (1996: p. 95).

Mas, o prazer de ensinar e aprender para ser bilateral (professor aprendendo) requer disponibilidade do professor para aprender – em vez de perguntar se “o aluno aprendeu o que ele ensinou”, perguntar “o que o aluno aprendeu” – só assim terá o prazer de aprender junto com o aluno.

Referências

BEST, David. The Rationality of Feeling. Londres: The Falmer Press, 1992.

BIAL, Henry (Ed.) The Performance Studies Reader. Londres: Routledge, 2004

BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. 4a Edição. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.

____ Meditações Pascalianas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.

BOURDIEU, P. e PASSERON, J.C. A reprodução. Elementos para uma teoria do Sistema de ensino. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982.

CARLSON, Mervin. Performance – a critical introduction. Londres: Routledge, 1996.

CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano – artes de fazer. Petrópolis (RJ): 1990.

GIROUX, Henri. Teoria Crítica e Resistência em Educação. Petrópolis: Vozes, 1986.

____ Os Professores como Intelectuais – rumo a uma pedagogia crítica da aprendizagem. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.

HATCH, J. Amos e Wisniewski, Richard. Life History and Narrative. Londres: The Falmer Press, 1995.

MURRAY, Janet. Hamlet no Holodeck – o futuro da narrativa no ciberespaço. São Paulo: UNESP e Itaú Cultural, 2003.

PAVIS, Patrice. The Intercultural Performance Reader. London: Routledge, 1996.

_____ Theatre at the Crossroads of Culture. Londres: Routledge, 1992.

PERRENOUD, Philippe. A Prática Reflexiva no Ofício do Professor: Profissionalização e Razão Pedagógica.  Porto Alegre: Artes Médicas, 2002.

WRIGHT, Elizabeth. Postmodern Brecht. Londres: Routledge, 1989.

 

 


Notas

1 Cecily O’Neill introduziu esta expressão, em drama, para designar o referencial e estímulo capazes de promover um crescimento orgânico do processo dramático, na medida em que ocorem como ‘forma-suporte’ para delimitar e contextualizar a atividade em grupo.

BEATRIZ A.V. CABRAL é professora adjunta do Curso de Artes Cênicas da UDESC (licenciatura, mestrado e doutorado), e diretora de Artes Cênicas na UFSC. Tem mestrado pela ECA/USP, mestrado pela Birmingham Polytechnic, e doutorado pela University of Central England in Birmingham. Coordenou intercâmbio com a Univeristy of Exeter (Programa CAPES/Conselho Britânico) de 1997 a 2001. Suas publicações incluem Ensino do Teatro – experiências interculturais (Org.), Drama como Método de Ensino (Hucitec). Desenvolve pesquisa nas áreas de pedagogia do teatro e recepção teatral.

 

BEATRIZ A.V. CABRAL, PhD (BIANGE CABRAL) is a Scenic Arts Professor at the State University of Santa Catarina (UDESC), and Scenic Arts director at the Federal University of Santa Catarina UFSC. She has a Master’s Degree from USP and a Doctorate from the University of Central England in Birmingham. From 1997 to 2001, was the Coordinator of an exchange with the University of Exeter (CAPES/British Council). From 2002 to 2004 has been the Treasurer of ABRACE. Publications: Ensino do Teatro – experiências interculturais (Org.) and Drama como Método de Ensino (Hucitec). Research Fields: Theater Pedagogy and Theatre Reception.