ATIVIDADE SIMBÓLICA NA INFÂNCIA E ABORDAGENS DO TEATRO NO
MEIO ESCOLAR:
SYMBOLIC ACTIVITY IN
CHILDHOOD AND BOARDING OF THE THEATER IN THE SCHOOL ENVIRONMENT:
(UFRGS)
Resumo
O artigo discute
as relações entre a construção da representação teatral pela criança e a ação
pedagógica relacionada à aprendizagem do teatro no meio escolar. Na discussão,
parte-se de um apanhado das etapas evolutivas do processo de construção da
atividade lúdica de caráter representativo, sob enfoque da teoria de Jean
Piaget, e da análise de determinados procedimentos docentes, no âmbito da
educação infantil, que caracterizam a abordagem do teatro e de outras formas
lúdicas consideradas preliminares à sua aquisição. Na perspectiva que se busca
enfatizar, a aprendizagem do teatro converge para o desenvolvimento da
inteligência e para os avanços do processo de socialização na medida em que
resulta da participação ativa e cooperativa da criança; e a ação pedagógica
tende a aliar-se a esse processo na medida em que articula o exercício da
capacidade de criação estética aos interesses coletivos.
Palavras-chave | atividade
simbólica | teatro | ação pedagógica | educação infantil
Abstract
The article discusses the relations between the
construction of the child’s theatrical representation and the pedagogical
action related to the learning of the theater in the school environment. The
discussion begins with a summary of the evolutionary stages of the process of
construction of the playful activity of representative character (theory of
Jean Piaget), and of the analysis of determined teaching procedures, in the
scope of the childhood education. By this perspective, the learning of the theater
converges to the development of the intelligence and the advances of the
process of socialization; and the pedagogical action tends to enter into an
alliance with this process.
Keywords | symbolic activity | theater | pedagogical action | childhood education
Como é que as
crianças adquirem conhecimento sobre teatro? Quais são os reflexos da ação do
adulto nesse processo? Essas questões motivaram uma investigação (2002) em que
busquei conhecer o ponto de vista das crianças a respeito dos jogos de faz-de-conta
e analisar a ação pedagógica relacionada à teatralidade na educação infantil.
Retomo-as, neste momento, na intenção de compartilhar algumas idéias sobre o
processo de construção da representação teatral na criança, e suas formas
intermediárias, e problematizar os modelos de abordagem pedagógica do jogo e do
teatro vigentes na escola.
A minha
argumentação apóia-se na contribuição de Jean Piaget (1946, 1954) – referencial
teórico bastante divulgado entre os educadores brasileiros, mas nem por isso suficientemente
compreendido por muitos daqueles que se dizem dele “tributários”, ou por outros
tantos que se entendem “aquém” ou “além” do seu domínio.
A busca de
entendimento do processo de construção da capacidade representativa na criança,
na perspectiva de Piaget, exige o “manuseio” de certos fundamentos da teoria,
que nos permitem ampliar a compreensão das relações entre a evolução da
atividade lúdica e o desenvolvimento da inteligência. Daí a necessária
inclinação das considerações iniciais do meu texto no sentido mais “teórico” e,
no seu decorrer, o esforço (comumente reiterado nas minhas tentativas de
diálogo com professores ou demais interessados pelos temas relacionados à
brincadeira infantil) de combinar teoria e prática na mesma reflexão.
Para
Piaget, o sujeito nasce com determinada estrutura que lhe possibilita
adaptar-se ao meio, ou, agir em relação aos objetos. Essa adaptação
realiza-se a partir de um fator denominado equilibração,
que compreende os mecanismos de acomodação e assimilação,
correspondentes, de forma análoga e complementar, às condutas imitativas e
lúdicas.
O
acompanhamento da passagem da assimilação e da acomodação sensório-motoras
(pré-simbólicas), próprias aos primórdios do desenvolvimento, para a
assimilação e a acomodação representativas, relacionadas às etapas mais
evoluídas do simbolismo, permite identificar inúmeras atividades que revelam a
capacidade simbólica do ser humano.
No
decorrer do período sensório-motor, a criança desenvolve a tendência à
assimilação dos objetos por meio da ação, ao mesmo tempo em que acomoda a sua
ação a esses objetos. O equilíbrio estável entre os mecanismos de assimilação e
acomodação atesta a chamada adaptação inteligente – processo dinâmico
desenvolvido em dois sentidos complementares: a imitação e o jogo.
A
imitação é fonte da representação, pois fornece os significantes imaginários,
enquanto que o jogo fornece as significações, funcionando como um condutor da
ação à representação. A evolução dessas duas condutas é observada através de
diferentes formas que se processam ao longo da infância.
Piaget
examina a distinção entre as formas preparatórias da imitação evidenciadas a
partir da simples percepção de um determinado modelo por parte do sujeito que
reproduz, e desenvolvidas em conexão com os progressos da inteligência
sensório-motora, e a imitação representativa, mais complexa, já implica a
evocação de um modelo ausente.
O
prenúncio dessas formas é a chamada ausência de imitação, fase de
preparação funcional na qual o exercício dos mecanismos reflexos possibilita o
surgimento das condutas propriamente imitativas e cujo funcionamento originará
a assimilação reprodutora, responsável pelo aparecimento das primeiras
imitações. A partir daí desenvolvem-se: a imitação esporádica, que se
prolonga para além da percepção; a imitação sistemática, originada a
partir da coordenação dos esquemas da visão e da preensão, e que atesta a
capacidade da criança de imitar sons e movimentos que executa espontaneamente;
a imitação imediata, determinada pelo estabelecimento de
correspondências entre movimentos imitados e pela constituição dos indícios,
signos móveis que permitem a formulação de previsões e reconstituições; e a imitação
diferida, ou protelada, que evidencia a capacidade representativa.
Piaget
refere-se à imitação ativa como característica da função representativa,
através da análise do exemplo de uma criança que, ao tentar abrir uma caixa de
fósforos, imita com a boca a abertura da caixa, ou seja, utiliza o próprio
corpo como símbolo representativo, ou significante, da ação executada.
A imitação diferida é, em última análise,
constituída pelos símbolos (dentre eles a imagem mental) e ampliada através da
construção do sistema de signos coletivos, ou seja, da aquisição da linguagem
(a fala).
A distinção entre símbolos e signos é
fundamental para a compreensão do processo de construção da atividade
simbólica. Para Piaget, os símbolos constituem “significantes motivados”, ou
seja, possuem relação de semelhança com o seu significado, sendo constituídos
pelo sujeito na ação preponderantemente individual; ao passo a construção dos
signos, considerados “significantes arbitrários”, é vinculada ao aspecto
preponderantemente coletivo da ação, e mediada por convenção social. Assim, uma
criança que utiliza um objeto querendo significar outro objeto (um barbante,
por exemplo, usado como se fosse uma cobra) realiza uma transposição
simbólica de caráter individual e provisório, ao passo que uma criança que
emprega uma palavra para designar o objeto que lhe corresponde (a palavra comida,
designando alimento), atesta a utilização de um signo, ou seja, de uma
construção fixada socialmente e passível de assimilação uma coletividade.
A evolução da atividade imitativa
predominantemente acomodadora corresponde aos
progressos da atividade lúdica, em cujas formas se observa o predomínio do
caráter assimilador do processo de equilibração.
O primeiro tipo de conduta lúdica manifesta-se nos jogos de exercício,
que constituem atividades ligadas ao prazer que a sua prática possibilita. Eles
surgem no estádio inicial de desenvolvimento e não pressupõem o pensamento,
tampouco implicam a representação. Tais jogos, embora considerados
essencialmente sensório-motores, tendem a reaparecer nos estádios mais
avançados, adotados como atividade assimiladora de novas funções experimentadas
ao longo da vida.
Os
jogos simbólicos, característicos do estádio pré-operatório, constituem
o segundo tipo de conduta lúdica analisado por Piaget. Eles pressupõem a representação
de um objeto ausente, sendo considerados atividade essencialmente humana. As
primeiras manifestações da capacidade simbólica constituem o esquema
simbólico, fase de transição que marca a passagem dos jogos de exercício
para os jogos simbólicos, evidenciando ações habituais (dormir, comer ou
lavar-se) realizadas fora dos seus contextos.
A
partir dessa manifestação inicial do simbolismo desdobram-se múltiplas formas
de jogo simbólico, ou faz-de-conta: a projeção dos esquemas simbólicos nos
objetos novos, caracterizada pela generalização dos esquemas simbólicos; a projeção
de esquemas de imitação em novos objetos, determinada pela a aplicação
simbólica dos esquemas, agora desvinculados da ação própria do sujeito e
relacionados aos modelos imitados, e que evidencia a dissociação entre o
significante e o significado; a assimilação simples de um objeto a outro,
forma na qual a criança age utilizando outros objetos, que não os reais, para
representar os objetos ausentes; os jogos de imitação, ou a assimilação
do corpo do sujeito ao corpo de outrem ou a quaisquer objetos, forma de
transposição simbólica em que a criança age “como se”, assumindo corporalmente
características do ser ou objeto imitado; e as combinações simbólicas,
compostas por pequenas cenas que expressam diversas necessidades sócio-afetivas
inerentes ao processo de desenvolvimento da criança.
Essas
formas iniciais do faz-de-conta infantil ainda preservam o caráter analógico do
símbolo e o aspecto preponderantemente individual e subjetivo da atividade, ou
seja, o sujeito não se preocupa com a semelhança dos seus símbolos e as suas
imitações carecem de objetividade. Nas etapas subseqüentes, o desenvolvimento
da capacidade representativa, aliado aos progressos da socialização, ocasionará
a perda da intensidade do caráter analógico do símbolo e a gradativa
aproximação do real, dando lugar à chamada simples representação imitativa
do real, etapa em que se observa nítida tendência à coerência.
Evidencia-se, então, a combinação simbólica ordenada, conduta que revela
a busca de uma ordenação na elaboração dos monólogos e o estabelecimento de uma
seqüência lógica das ações: a criança passa a orientar o jogo para a imitação
exata do real, preocupando-se com a verossimilhança das suas transposições
lúdicas e tendendo para a elaboração formal, tanto no que se refere aos papéis
imitados, quanto à adequação do material (figurinos, adereços e cenografia) que
complementa o jogo.
Esse
processo culmina com o aparecimento do simbolismo coletivo, conduta
eminentemente social que evidencia o ajustamento de papéis, a diferenciação da
representação e a ordenação dos propósitos em jogo. O desenvolvimento da
capacidade representativa própria dessa fase limite entre os jogos simbólicos e
os jogos de regras (considerados por Piaget “a atividade lúdica do ser
socializado”) orienta o jogo no sentido da elaboração cênica, que, devido à
progressiva superação do aspecto generalizador das
formas de simbolização anteriores e ao crescente aperfeiçoamento da
representação teatral, já manifesta um caráter estético.
Expressão
estética e ação “educativa”
Em que pese a
complexidade do processo evolutivo da atividade representativa e a sua relação
de convergência com a elaboração teatral, a expressão artística da criança em
processo de escolarização parece desenvolver-se muito aquém do que as análises
de Piaget levam a supor. Ao analisar a capacidade de elaboração artística da
criança ele observou que, nos sistemas tradicionais de ensino, as crianças
menores (em idade pré-escolar) parecem apresentar maior domínio das capacidades
artísticas do que as maiores (em idade escolar), ou seja, o progresso contínuo
que se observa tanto no desenvolvimento das funções intelectuais quanto no
estabelecimento das relações sociais, não corresponde ao desenvolvimento da
expressão estética; ao contrário, neste aspecto, a atividade da criança
apresenta uma espécie de retrocesso.
Consideradas as
dificuldades inerentes ao estabelecimento das fases regulares do
desenvolvimento das tendências artísticas, sobretudo se comparadas às demais
funções da inteligência da criança, constata-se que, desde os primórdios da
atividade representativa, ela utiliza, espontaneamente, diversos meios (o jogo
simbólico, a imitação, o desenho, a modelagem, o canto) para exteriorizar aspectos
da sua personalidade, compreender a sua ação sobre os objetos e adaptar-se ao
real. Entretanto, ao ser exposta às pressões dos adultos (seja no ambiente
escolar, na vida familiar ou na interação com a mídia) ela tende a restringir
as suas possibilidades de criação artística em detrimento dos modelos de
representação teatral, impostos através de abordagens vinculadas a objetivos
disciplinares, mais ou menos coercitivos, meramente utilitários, ou aleatórios.
Na educação
infantil, tais abordagens revelam-se através de dois tipos clássicos de
procedimentos dicotômicos: por um lado, a não-diretividade
que caracteriza a chamada “brincadeira livre”, atividade que constitui momento
isolado do “fazer escolar”, cujas ações e propósitos parecem alheios às pesquisas
desenvolvidas na sala de aula; por outro, o autoritarismo da ação docente na
implementação das montagens cênicas escolares (os teatrinhos, ou pecinhas),
encaradas como práticas “menores”, incompatíveis com a quantidade de
construções simbólicas, com a qualidade estética e com os progressos no sentido
da socialização evidenciados nas brincadeiras de faz-de-conta.
Mas a que
interesses e necessidades correspondem as primeiras manifestações estéticas da
criança? E de que tipos são os obstáculos com os quais ela se defronta no
decorrer da sua vida escolar?
Para Piaget, o pensamento e a vida afetiva da criança são direcionados
em função de dois aspectos opostos: de um lado, a necessidade de adaptação às
regras e aos meios de expressão que a realidade material ou social impõem à sua
ação; e, de outro, as experiências e os sentimentos individuais, inexprimíveis
apenas através do sistema de signos coletivos (linguagem oral e escrita), que
necessitam ser expressos através de meios “especiais”.
Ora, se os jogos simbólicos constituem uma “síntese entre a expressão
do eu e a submissão ao real” (PIAGET, 1954: p. 188) e a representação teatral
resulta de um processo de construção coletiva originário das fases mais
desenvolvidas desse simbolismo, através do qual as crianças expressam as suas
visões de mundo, o ambiente escolar parece ser o lugar ideal para o
desenvolvimento desse processo. Entretanto, o ensino tradicional insiste em
direcionar a sua ação noutro sentido, afirmando-se por métodos autoritários de
abordagem das disciplinas artísticas, caracterizados pela imposição de valores
e conhecimentos elaborados pelo professor, em detrimento da participação ativa
e cooperativa das crianças. No caso das mencionadas montagens cênicas
escolares, as crianças parecem limitar-se a reproduzir padrões estereotipados e
modelos adultos (sem sentido para elas), o que tende a ocasionar condutas
exibicionistas, quando não significam experiências traumáticas.
Considerando o
desenvolvimento das funções intelectuais, constata-se que os efeitos dos
métodos autoritários tendem, muitas vezes, a passar despercebidos, pois os
alunos que se limitam a repetir o que lhes foi “transmitido”, parecem
apresentar um resultado satisfatório, sem que se consiga estimar os desejos e
curiosidades que reprimiram; ao passo que, em relação ao domínio das funções
artísticas, a pressão adulta tende a cercear a ação criativa das crianças,
ocasionando um problema de sérias implicações, que diz respeito ao sistema
educacional na sua totalidade.
Para Piaget, a
educação artística deve priorizar o desenvolvimento da espontaneidade estética
e da capacidade de criação, que se manifestam de diferentes formas ao longo da
infância. E não é possível aceitar qualquer forma que se pretenda “educativa”
mediante imposição de verdades absolutas, padrões estéticos e normas de conduta
a serem acatados sem questionamento, ou reproduzidos passivamente pelas
crianças.
Assim como
qualquer forma de conhecimento, a aprendizagem do teatro no meio escolar deve
significar avanços à elaboração cênica e ao desempenho dos propósitos lúdicos
dos seus sujeitos, o que só é possível mediante intervenções que levem em conta
as necessidades e os desejos desses sujeitos e compreendam a representação
teatral como um processo que ocorre em convergência com o desenvolvimento da
inteligência e com os progressos da vida social.
Referências
PIAGET, Jean.
[1954] A educação artística e a psicologia da criança. In Sobre a pedagogia. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1989.
___ [1946] A
formação do símbolo na criança. Rio de Janeiro: Zahar,
1978.
SANTOS, Vera Lúcia Bertoni
dos. Brincadeira e conhecimento:
do faz-de-conta à representação teatral. Porto Alegre: Mediação, 2002.