Uma resposta a Paul B. Preciado
Prezado Sr. Paul Preciado e seus aplaudidores
Começo essa comunicação agradecendo o estímulo que me foi dado pela conferência do Sr. Paul Preciado ocorrida nas Jornadas da Escola da Causa Freudiana na França e difundida na internet, para tecer esses comentários que partilho agora com vocês.
Sinto informar que somos todos Pedro Vermelho, ou somos todos descendentes diretos desse macaco que, como foi mencionado na conferência, é o personagem da história criada por Franz Kafka em 1917 para explicar às autoridades científicas quais danos lhe trouxeram sua captura e o consequente esquecimento de sua vida de animal, em prol de sua humanização e aprendizagem da linguagem. É verdade que de modo algum isso nos trouxe liberação, mas encarceramento, até porque a humanização realmente não é uma história de liberação seja na Europa ou onde for. A subjetivação, com todas as identificações que ela comporta, sejam bem-vindas ou mal-vindas, é um enquadramento. E é num jogo de alienação e separação disso que vamos cavando espaço para respirar. Portanto, é a partir dessa condição de enjaulada que me dirijo a vocês, já adiantando algumas considerações.
Creio que posso afirmar que o regime da diferença sexual com o qual trabalha a psicanálise diz do modo como apreendemos simbolicamente o que vigora na natureza e que em última instância nos é inapreensível. É a constatação de diferenças que nos permite reconhecer o que há. Se algo jaz na mesmidade, nem o notamos, somos indiferentes. Não causa ‘pathos’, espanto, não merecendo, portanto, nossa atenção. É pela comparação, inclusive dos corpos, que fazemos distinções e entramos no exercício de tentarmos nos situar, buscando referências que malgrado nos enjaulem, nos permitem ainda assim identificações protetivas, estratégias de invenção de sentido, onde no real não há sentido algum. Se há aí algo que possamos chamar nesse regime da diferença sexual de heteronormatividade, é importante que se saiba que esse hetero, caro sim à psicanálise, deve ser remontado à sua origem grega. Ou seja, a psicanálise preserva o exercício da diferença, preserva a ideia da alteridade, do desigual, no centro de nossas reflexões e de nossa prática clínica. E isso não se dá, ou pelo menos, não deve se dar para privilegiar uma prática sexual em detrimento das outras, ou para determinar padrões de escolhas de objeto e muito menos para privilegiar um sexo em detrimento do outro.
Se acontece de fazerem isso, é porque se confundiu alhos com bugalhos. Ou porque se colocou a pobre da psicanálise a serviço da caretice conservadora que a descaracteriza completamente. E isso não faz jus à Freud, Lacan, ou qualquer um dos grandes.
Se o binarismo que vigora na observação da presença ou ausência de pênis na comparação dos corpos põe, desde cedo, o psiquismo para trabalhar, tentando dar um sentido à diferença; e se diferentes culturas desde os seus primórdios relacionam a plena fertilidade da natureza com a ereção fecundante, isso talvez justifique a fascinação que faz com que o símbolo fálico, que enquanto tal não pertence a ninguém, funcione psiquicamente de modo imaginário e simbólico, como unidade de medida de potência de um sujeito. Todos, homens, mulheres, e quem mais for, estamos em falta para com essa plena potência vital e cada um a ressignifica a seu modo e com o aparelhamento que tem. Em nossa jaula humana somos desprovidos de falos, desaparelhados disso que falta para sermos supostamente plenos.
Não por acaso, Freud para tentar figurar o que resta de insondável na configuração psíquica da diferença sexual, propõe metaforizá-la pelas posições relativas à atividade e passividade, relacionando-as, respectivamente, ao masculino e feminino. Desse modo, sendo todos nós homens e mulheres bissexuais potencialmente, podemos fruir da masculinidade e da feminilidade na medida da assunção do que há de ativo ou passivo em nós no campo da sexualidade.
Nesse ponto, dando um passo além de Freud, Lacan aceita a provocação deste para pensar o que há de misterioso e de peculiar ao feminino que, na disputa fálica, no âmbito imaginário, poderia aparecer em desvantagem. É quando, então, reconhecendo que o campo sexual é fundamental mas insuficiente para cernir a existência, supõe que, para além da dualidade do sexual que vigora em nós, há uma dualidade de gozos. Reconhece o gozo sexual como gozo fálico, gozo da celebração da potência, prenhe de sentido, e, devido à insuficiência desse gozo, que eu diria seccionado, ele supõe um outro, não fálico, ilimitado, alheio ao sentido. Um gozo suplementar que ele nomeia como feminino, o avizinhando ao gozo místico, fora do sexual.
Poderíamos dizer que em um se trata da afirmação de si, da fruição da subjetividade, e diante do limite desta, advém a hipótese de um gozo Outro, gozo da entrega, gozo da existência. Gozo não seccionado, que pode tomar diversas vertentes, tanto celebrativas como podemos supor que compareça na experiência da criação, quanto devastadoras, se apresentando como gozo do Outro invasivo e psicotizante.
Percebe, Sr. Preciado? O Sr. tem razão. Nem tudo é restrito à divisão sexual, binária ou não. A insuficiência do sexual em cernir tudo o que há na existência nos faz supor que há uma dimensão de gozo, que transpõe em muito o que é da ordem da diferença. Mas, aí, estamos num campo no qual a designação de feminino proposta por Lacan transpõe a fronteira entre os sexos. E é aí que o feminino se apresenta como um conceito a ser melhor cernido em nosso campo, dado sua não obviedade. Por isso fazemos tantos Congressos sobre o tema do feminino, que inclusive me parece bem mais próprio do que o tema das mulheres. Mas, é verdade, precisamos falar do masculino também, e das inúmeras variáveis através das quais tentamos cernir a vasta dimensão da sexualidade que extrapola em muito o binarismo sexual. E ainda é preciso que consideremos também um mais além, mais além do sexual.
Mas, voltando à questão do regime da diferença sexual, é verdade que ele também foi explorado em certos campos, e mesmo numa ampla perspectiva na cultura, como uma epistemologia política do corpo que realmente, enquanto histórica e mutável, foi e é acompanhada de ideologias diversas com múltiplas consequências, muitas vezes absolutamente nefastas e pervertidas. Uma abordagem do regime da diferença sexual não anula a outra. Uma diz respeito a um modo de pensar a organização psíquica sobretudo a partir das “Consequências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos”, dentro da lente oferecida pela psicanálise para se ver o mundo e pensar acerca do conflito e do sofrimento humano, no exercício de fazer de si mesmo sua morada, propiciando meios de investigá-lo de modo a produzir efeitos, na melhor das hipóteses, terapêuticos.
Habitar esse estranho que é nosso corpo não é tarefa fácil para ninguém. Não à toa o corpo, por mais que seja também fonte de prazer, é um dos fundamentos do mal-estar. Não apenas porque é sexuado, mas também porque não o escolhemos, adoece, envelhece e morre, a despeito do nosso controle. Nas estratégias para habitá-lo se descortinam, na atualidade, inúmeros recursos, dentre os quais cirúrgicos e farmacológicos. Enquanto psicanalistas não somos juízes para absolver ou condenar as opções tomadas pelo sujeito. E também nossas hipóteses diagnósticas, como bem diz o nome, são hipóteses, não sentenças. Referem-se a defesas privilegiadas por um sujeito e não a degenerações ou doenças. E ainda, só podem ser levantadas no contexto de um processo psicanalítico em curso, servindo para que o analista, no caso, se oriente quanto ao seu modo de intervir. Isso serve a ele, não ao analisante. E é bom que se diga que para que o analista possa se emprestar a essa difícil função clínica, é preciso que ele pendure seu eu cheio de si, e de “gênero”, na sala de espera, e compareça como “trans”, ou seja, suporte mutante de todas as investidas que o desejo inconsciente pode operar na contingência da trans-ferência.
Lidamos justamente com a dimensão traumática do sexual. Essa comparece para quem quer que seja, homo, hetero, bi, trans, e todas combinatórias possíveis. Não há sexuação que repouse sobre um jardim de rosas. Trata-se aí de secção, corte, ruptura com uma natureza na qual a harmonia ficou perdida. Daí a pertinência do conceito de castração que bem assume sua dimensão simbólica, encobrindo a dimensão radical da privação que nos toca a todos de diferentes maneiras. Agora, é claro que o amparo ou desamparo social que um sujeito experimenta na singularidade de sua vida conta, e muito, e daí a militância é perfeitamente compreensível e desejável.
O Sr. denuncia a violência hétero-patriarcal colonialista, e é extremamente justo que o faça, sobretudo no momento dessa onda de retrocesso mundial a um conservadorismo nefasto que justamente pretende anular e penalizar as diferenças, as minorias, e pasteurizar comportamentos. Assim, um discurso de militância, sobretudo agora, é extremamente bem-vindo. Por isso sua coragem, sua provocação, são inspiradoras. Ainda que caiba também a ressalva de que essa militância deve ser consciente o suficiente para que não fomente irresponsavelmente a voracidade capitalista que, na ânsia de alimentar a indústria farmacológica e faturar cirurgias, promova um modismo inadvertido induzindo certos sujeitos a danos terríveis com a apologia de manipulações irreversíveis do corpo, prometendo uma felicidade que, enquanto humanos, só a desfrutamos parcial e momentaneamente, seja qual for nossa posição na partilha dos sexos. Quanto a isso, cabe lembrar ainda que se enquanto adultos, ainda assim, somos mutantes na dinâmica das nossas identificações, imagine as crianças e adolescentes que estão em franco processo de formação no exercício de experimentar a vida. Não por acaso eles são ainda mais vulneráveis aos modismos.
Defendo que é preciso que façamos uma diferença entre o que diz respeito à teoria e a clínica psicanalítica, e o que diz respeito à militância política na reivindicação de reconhecimento social, jurídico, médico... relativa à liberdade de escolher dentro do possível o que cada um, “maior de idade”, pode fazer com seu corpo, com o seu modo de habitá-lo e de fruir dele.
É verdade que talvez a grande maioria dos psicanalistas tenham ficado tempo demais apartados da cena pública e da intervenção política. Porém, no momento que falamos enquanto psicanalistas, creio que é preciso diferenciar o que vem a ser um discurso psicanalítico imbuído de uma política própria que é afeita à singularidade da ética da psicanálise, de um discurso de militância. O discurso psicanalítico destoando inclusive de muitos ideais da cultura é, sobremaneira, prevenido quanto à fragilidade de todas as certezas, por isso trabalhamos tanto com as representações e com o que resta de irrepresentável. Um discurso de militância tem uma verdade própria a ser defendida e difundida. Cada um desses discursos tem suas pertinências e contextos específicos.
Penso, Sr. Preciado, que seu discurso tem toda pertinência do ponto de vista da militância política, e reconheço nele seu valor, porém, na visão que constituí a partir de minha longa formação psicanalítica, o que implica minha própria análise, minha prática clínica de anos e meus estudos e escritos nesse campo, me permito dizer que sua intervenção é uma violência à psicanálise e meus colegas ao convidá-lo e aplaudi-lo fizeram um grande desserviço celebrando a resistência a ela. Parecem querer contribuir para o suicídio da psicanálise. É injusto e equivocado que seja renegada a potência revolucionária que ela tem desde sua invenção, até os dias de hoje, o que é fundamento da sua razão de existir.
Cordialmente,
Denise Maurano
Rio de Janeiro, 15 de dezembro de 2019.