REVISTA COMPLETA. Ano 10. Número 02: Edição dezembro de 2012.
DOI:
https://doi.org/10.9789/1679-9887.2012.v10i2.%25pResumo
Apresentamos o volume 10, número 2 de nossa revista com artigos diversificados em diferentes áreas do saber científico o que consolida a nossa proposta de transdisciplinaridade que, a cada número, se solidifica em função da abrangência das demandas de autores de campos distintos para publicação. São artigos que circunscrevem temáticas no campo da Psicanálise, da Filosofia, da Memória Social, das Artes e da Religião entre outras leituras, privilegiando na sua maioria, conexões com a Psicanálise. Os três artigos que comentaremos a seguir centram-se sobre questões de natureza clínica por diferentes vertentes: considerando a produção escrita da literatura testemunhal como uma possibilidade de elaboração da experiência traumática; focalizando a construção do caso clínico no âmbito da transferência, entendido como lugar privilegiado da pesquisa em Psicanálise e, na leitura do pensamento de Canguilhem em relação a sua influência nas ideias clínicas freudianas iniciais e a ruptura com a noção de pulsão de morte. As discussões acerca do trauma têm um lugar privilegiado no âmbito do saber psicanalítico e igualmente da clínica. Durante muito tempo, desde a transposição dessa noção e sua redefinição para a Psicanálise, pensou-se apenas em uma de suas nuanças: os efeitos desestruturantes da experiência traumática. Contudo, muitas reflexões têm levantado outras questões acerca dos aspectos positivos do trauma, seja no que concerne ao processo relativo aos cuidados maternos, pensado como experiência traumática, por se tratar de uma invasão no corpo do infans para implante da sexualidade; até a exposição a catástrofes como ocorreu, principalmente na primeira metade do século XX e que seus sobreviventes encarregaram-se, na medida do possível, de produzir registros sobre condições de vida extremas. É nesse prisma que o artigo Uma articulação entre o conceito de trauma e o de memória social: a elaboração da experiência traumática, de Flavia de O. Friedl e Francisco Ramos de Farias, apresenta uma discussão acerca do trauma no âmbito da Memória Social, tomando como parâmetro a elaboração, aspecto integrador do trauma, uma vez que resulta da mobilização do sujeito para traçar bordas ao indizível da experiência. O artigo propõe rastrear a noção de trauma no pensamento freudiano, destacando o aprimoramento em termos das modificações introduzidas por Freud, especialmente, a partir das descobertas clínicas que, no contexto da análise da chamada neurose de guerra, sofre uma virada fundamental. Em princípio, alude-se aos efeitos desintegradores da experiência traumática, para finalmente os autores lançarem mão da literatura testemunhal e demonstrar a possibilidade de a escrita ser considerada a elaboração, por mínima que seja, da experiência traumática. Assim é traçada uma relação entre uma produção sobre uma experiência vivida e um possível destino construído para essa experiência que, minimamente, acondicione determinadas impressões que se mantêm na qualidade de um presente contínuo sem serem transmutadas em representações. Quer dizer, a produção de um testemunho representa uma certa distância do sujeito, da experiência vivida. Os autores ilustram esse ponto a partir do legado deixado por Primo Levi sobre o relato de suas experiências no campo de concentração na Segunda Guerra Mundial em função das quais “o testemunho seria a narração, não tantos desses fatos violentos, mas da resistência ou da impossibilidade concernente à sua compreensão” para articular o conceito de trauma com o de Memória Social, considerando que a escrita é um processo de elaboração, sendo pois uma vertente positiva dos efeitos do trauma em termos de produção de arranjos subjetivos. Seguindo o viés da clínica Debora Franke e Jerto Cardoso da Silva apresentam-nos o texto Da escrita à escuta: a construção do caso clínico em Psicanálise, numa discussão aprofundada sobre procedimentos clínicos demonstrando especialmente a importância da escrita na construção do caso clínico fundamentada em um escuta perpassada pela Ética. O que os autores denominam a escrita refere-se, contudo, ao processo de pesquisa em Psicanálise em função do qual a clínica passa pela escrita. Os autores partem da exortação freudiana exposta já em 1905 de que na Psicanálise “tratamento e pesquisa coincidem” para sustentar que os princípios norteados da atividade investigativa em Psicanálise são clínicos, de modo que fazer pesquisa em Psicanálise só é possível no âmbito da experiência com o inconsciente, considerando-se, sobretudo, a produção de saber que advém de uma análise, incluindo o desejo do pesquisador na constituição do enigma que é descortinado com a travessia da fantasia fundamental. A transferência é o conceito ao qual os autores recorrem, não só para situar o âmago da experiência clínica como também o vetor da pesquisa seja em termos do amor ao saber do lado do analisante; seja em termos do amor ao trabalho, no caso do analista. Disso então concluem os autores que o solo propício da pesquisa em Psicanálise, cujos efeitos reverberam na teoria, mas igualmente na clínica, é a construção do caso clínico em que o processo concerne ao domínio do significante em termos de “uma leitura dirigida pela escuta, para que se possa identificar novos significantes nos dados trazidos por sua investigação”. A inovação apresentada consiste na formulação de que a escrita do caso clínico, prática inaugural no pensamento freudiano, tem consequências diretas nos efeitos da análise: ou seja, repercute na maneira como o próprio sujeito faz a escuta de seu caso. Por isso, afirmam os autores: a construção do caso clínico é uma espécie de renovação da experiência com o inconsciente. Em primeiro lugar, por se tratar do relato de uma experiência singular, resultado do encontro inédito entre um analista e um ser-em-sofrimento que, acossado pelo sintoma faz a demanda de uma análise, tecendo, em filigranas, as malhas de uma teia que somente depois de produzida será alçada à condição de uma história, no caso a do analisante. Em segundo a construção do caso clínico demonstra a passagem de algo da dimensão do inteligível para a ordem do sensível, na medida em que são cotejados e delimitados fragmentos de uma história de vida que tomam corpo na esteira da cadeia significante. Quer dizer, algo é formulados em signos, letras, sons, gestos, entonações e outras tantas formas sobre os efeitos do encontro com o real. Em terceiro lugar, a escrita do caso clínico é o resultado da comunicação de uma experiência singular que ocorreu entre dois agentes em circunstâncias em que prevalece a assimetria e que, do lado do analista, há o comprometimento ético com a produção de um saber, da parte do analisante; sendo esse o ponto de partida para a pesquisa. Quer dizer: “a escrita do caso clínico coloca em jogo os significantes do sujeito, suas produções com base nas elaborações que pôde construir em análise”. A conclusão apresentada pelos autores segue a linha de que o escritor, no caso o analista, que se propõe a escrever um caso deve dispor-se a capturar o enigma que se encontra perdido nos interrogantes teóricos que guiam a prática do analista. Seguindo a linha de pensamento que problematiza a clínica em Psicanálise temos uma interessante discussão no artigo Reflexões sobre o normal e o patológico e a Ética da Psicanálise, onde Claudia Ciribelli Rodrigues Silva apresenta uma aproximação entre o pensamento de Canguilhem acerca do normal e patológico e as implicações dessa concepção na construção do pensamento freudiano em termos da direção do tratamento. Não só são evidenciados pontos em comum como também são ressaltadas os distanciamentos de ideias. A discussão sobre os critérios utilizados por Canguilhem acerca da dimensão normal-patológico é estendida aos primórdios da elaboração freudiana acerca da invenção de uma clínica original fundamentada pela palavra. É no sentido da construção de uma práxis a partir do exercício contínuo de teorização acerca da clínica que a autora enumera as aproximações e distanciamentos entre Canguilhem e Freud, evidenciando passagens do pensamento do primeiro e interpretando-as no âmbito do pensamento do segundo; seja para mostrar uma continuidade; seja para assinalar o momento de uma ruptura radical entre as duas formas de compreensão acerca da condição de ser doente para o homem. São pinçadas passagens do pensamento de Canguilhem para evidenciar, em termos do rastreamento epistemológico, a interpretação de que há uma continuidade entre os processos normais e patológicos. Essa continuidade é analisada para demonstrar como esse pensamento permeia originalmente as ideias de Freud, como também são argumentos importantes em termos de contraposições. No entanto a distinção de Canguilhem entre as duas acepções de normalidade pode ser considerada como um caminho para se pensar à singularidade do sujeito, especialmente no tocante à ruptura operada por Freud, com relação ao saber médico na proposta de que os estados de saúde e doença seriam decorrentes de duas bases distintas. Com o conceito de defesa Freud afirma que saúde e doença devem ser pensadas a partir de um mesmo critério: sucesso da defesa como a condição de saúde e fracasso como a doença. Outro salto decisivo empreendido por Freud, em uma distância marcante do pensamento de Canguilhem, consiste segundo a autora na utilização do último autor das ideias de Leriche para quem “o indivíduo saudável é aquele que não tem consciência de seu corpo”. Eis um ponto destacado pela autora que é confrontado pela experiência clínica da Psicanálise, a qual só é possível a partir do momento em que o sujeito encontra-se em desconforto em decorrência da desestabilidade oriunda do sintoma. Não obstante, também é evidenciado o salto qualitativo depreendido no pensamento de Canguilhem em relação ao pensamento de Leriche quando é feita à remissão à ideia de que, no entender de Canguilhem “é através da experiência de dor que obtemos a coincidência total da doença e do doente”. Esse é um ponto de aproximação com o pensamento de Freud para quem a norma somente deve ser formulada em termos estritamente individuais, pois deve também referir-se ao pathos que quer dizer padecimento, queda, inclinação, paixão, sentimento de impotência. Desse modo, a autora recorre à noção de sintoma como substituto de uma satisfação sexual para apontar a aproximação no pensamento dos dois autores. Porém é com a noção de pulsão de morte que se opera um distanciamento radical, uma vez que a ideia ensejada nessa noção é a de desequilíbrio, o que não tem lugar no pensamento de Canguilhem, visto que conforme é trabalhado no texto “o ser humano traz em si também forças que agem contra a vida”. Essa tese não se coaduna com o pensamento de Canguilhem para quem toda a mobilização do organismo consiste na busca de um equilíbrio decorrentes das forças que lutam pela preservação da vida. De resto, a autora fundamenta suas argumentações para marcar a diferença de pensamento entre os dois autores recorrendo ao campo clínico, especialmente, no contexto da formulação freudiana acerca do final de uma análise que “não visa à cura, menos ainda a supressão do sintoma”. Quer dizer, a finalidade de uma análise seria colocar o sujeito em uma outra posição com relação a autoria do seu sofrimento, mediante a produção de um saber, razão pela qual a experiência com o inconsciente, mesmo valendo-se de estratégias técnicas não pode, em nenhuma circunstância, deixar de ser atravessada por fundamentos éticos. Assim fica patente a distância entre o pensamento de Freud com relação às ideias de Canguilhem para quem a intervenção na esfera da doença deveriam fundamentalmente dirigir-se em relação à busca de um estado de harmonia e equilíbrio. Esse aspecto é trabalhado com bastante vigor no artigo e com cuidado na proposta argumentativa. Os três artigos focalizados a seguir aproximam-se do âmbito das conexões entre a Psicanálise e outros campos de saber a partir dos quais, em um primeiro momento, a castração e a morte são pensadas com relação à Cibernética; em um segundo, a experiência mística é trabalhada com relação ao conceito de feminino e, em um terceiro, o conceito de corpo sem órgãos de Deleuze é a matriz de discussão filosófica considerado a Ética. O artigo A descoberta de destino, castração e morte na máquina cibernética de Fabiola Menezes de Araújo nos brinda com uma aproximação entre a Psicanálise e a Filosofia. Numa produção oriunda da tese de doutorado a autora faz um passeio pelo pensamento de Martin Heidegger para demonstrar como Lacan valeu-se das ideias desse filósofo para trabalhar questões como a morte, a partir do recurso ao campo da Cibernética. Nesse sentido o inconsciente formulado em termos de uma estrutura é pensado como equivalente a uma máquina cibernética. Em seguida a autora adentra na clínica organizada por Lacan em torno de três modalidades: a histeria, a neurose e a psicose. Toda a problematização acerca dos posicionamentos clínicos é feita em alusão ao muro da linguagem, considerado como a “precondição de surgimento das realizações simbólicas”. Dai é feito um encaminhamento à máquina cibernética equiparada ao muro da linguagem. Uma vez traçada essa analogia, a autora trabalha a noção de máquina cibernética em aproximação à questão do destino, visto que em função dessas máquina as linhas mestras do destino realizam-se em circuitos cuja finaliza é postergar a realização da morte. Assim é proposta uma autonomia para essa máquina, mas os circuitos engendrados fazem com que o homem, na sua condição de existente, permaneça “distante da experiência do real traumático”. Desse modo, a máquina descortina um horizonte para o ser em termos da alternância de fechamentos e aberturas de possibilidades em função das quais organizam-se as funções simbólicas. Enfim é no tocante ao registro simbólico que são tecidas considerações no que tange ao movimento transcendental do sujeito do inconsciente na compreensão do inconsciente como o discurso do Outro. Dai então é abordada a analítica existencial lado a lado com a psicanálise lacaniana para se pensar o desvelamento do ser num movimento de abertura e fechamento do inconsciente. O artigo conclui que o muro da linguagem na regência da máquina cibernética torna possível apreender o inconsciente no processo de alternância no qual o ser se desvela. Ainda no contexto das possíveis conexões do saber psicanalítico com outros campos do pensamento humano temos o artigo Notas sobre a experiência mística e o feminino da Psicanálise de Pedro Teixeira Castilho que faz uma discussão sobre determinadas questões do campo religioso, confrontando-as com formulações do pensamento de Freud e de Lacan. O ponto de partida é a afirmação freudiana acerca da relação entre a neurose obsessiva com a questão pai, o que é reformulado por Lacan que dá um passo a mais em relação a Freud para situar um tipo de experiência além do pai: a experiência mística. Para abordar essa contribuição lacaniana o autor vale-se do texto schereberiano e dos escritos de Santa Teresa de Ávila para situar fenômenos paradigmáticos da experiência místico como efeito de feminilização. O autor começa pelas incursões ao texto freudiano sobre os atos obsessivos e suas relações com as práticas religiosas para assinalar que o paciente “não pode renunciar a eles, caso contrário, é tomado por uma grande angústia”. O que está em jogo nesse destacamento é que os atos obsessivos são movidos por um sentimento de culpa e como a culpa é uma variante tópica da angustia, tais atos são mantidos para evitar que o sujeito seja inundado por esse afeto. Assim é feita uma aproximação entre a neurose obsessiva e práticas religiosas pelo viés do sentimento de culpa. Disso então decorre a compreensão dos rituais aos dos quais o neurótico obsessivo se utiliza em termos de fenômenos do campo da religião o que aparece, de forma explicitamente colocada, em o Mal-estar na cultura, momento da elaboração freudiana em que a culpa é equiparada ao pecado. Com isso é traçado um paralelismo entre a vida religiosa e a neurose obsessiva, consolidado na afirmação de que a neurose obsessiva é a caricatura da religião. O argumento utilizado nessa aproximação é o de que, em ambas (neurose obsessiva e religião) ocorre a supressão de determinados impulsos pulsionais. Eis a razão pela qual a neurose obsessiva é o encaminhamento freudiano fundamental para a compreensão tanto da dinâmica do pensamento quanto das práticas religiosas que têm como vetor a figura do pai. Por essa via, o autor chega à questão do Supereu entendido como uma “instância que conclama a proibição para o filho que deve renunciar ao gozo da satisfação pulsional” A questão da renúncia permeia tanto a neurose obsessiva quanto o campo das práticas religiosas. Em ambas chega-se a questão do pai que, na vida adulta, encarna-se em Deus como figura substituta, do que deduz o autor que a teologia, como toda teoria, é calcada na presença de um sujeito suposto saber. Na aproximação com a figura paterna esse suposto saber é suposto em relação a Deus. Ainda enveredando pela questão da angústia comparece o pensamento de Kierkegaard nas formulações lacanianas, principalmente no que tange ao encontro do homem com Deus em seu pronunciado estado de abandono e desamparo. Destaca o autor que a pretensão de Lacan é encontrar em Kierkegaard um Deus que não possa ser desprezado como uma experiência “que tem a anulação fálica traduzida pelo sentimento de angústia, um furo na organização lógica da rede significante”. Seria o equivalente a pensar em uma figura de Deus não especularizável pelo Eu que sirva de preenchimento a qualquer forma ideal ou que amaine qualquer culpa provocada pelo Supereu. Depois de um percurso muito bem construído em obras canônicas do pensamento freudiano e em diferentes textos do ensino lacaniano o autor produz fundamentos para suporte de suas conjecturas sobre o entendimento acerca da mulher em termos do efeito de feminilização do objeto no contexto da experiência mística. A saída mística é definida como o encontro com o inominável, ou seja um tipo de angústia que lança por terra todas as balizas subjetivas, visto ser Deus a figura que se encontra fora da simbolização significante. Assim, a experiência mística, situada no mesmo plano do gozo feminino, reporta-se pois, a um absoluto, mas em uma espécie de transbordamento dos limites impostos pela palavra. Eis a valiosa conclusão a que chega o autor numa articulação precisa entre o campo da metapsicologia e a clínica. No espírito das discussões de cunho epistemológico o artigo Deleuze: como criar uma corpo sem órgãos de Barbara Lucchesi Ramacciotti problematiza com aguçada perspicácia conceitos no âmbito da Filosofia com destaque especial à questão da Ética. O conceito de corpo sem órgãos é rastreado nas formulações deleuzianas acerca da máquina desejante, o que reafirma que se trata de encaminhamento para se pensar uma prática. A fundamentação para essa formulação é o pensamento de Spinoza acerca da substância única e de um corpo cinético. Partindo desses pressupostos teóricos a autora lança a pergunta: como criar para si um corpo sem órgãos? A resposta é produzida gradativamente a partir das contribuições de Spinoza que são cotejadas para enfim situar o âmbito da prática no plano da imanência. O recurso para a reflexão é a releitura deleuziana do pensamento de Spinoza, entendida como um modelo de filosofia prática, ou seja, “a única Natureza não pode operar como uma instância para além das coisas singulares existentes em ato, pois a substância única necessariamente manifesta-se como modo; como as afecções de uma substância”. Esse é o argumento utilizado na aproximação entre a substância única espinoziana e o plano da imanência em Deleuze que a autora demonstra, com argumentos contundentes, valendo-se do conceito de intensidades, quer dizer dos movimentos de partículas e de cargas afetivas constitutivas de todas as coisas. De posse desses argumentos é discutida a potencialidade do corpo a partir da noção de corpo sem órgãos que, no entender de Deleuze, esse corpo somente pode ser formulado no âmbito da Ética em termos de uma cinética e de uma dinâmica, consideradas como duas acepções acerca do corpo. Em uma, o corpo é pensada nas relações de movimento e de repouso; em outra, tem-se a compressão de corpo enquanto corpo afetado, quer dizer, corpo em sua potencialidade de afetar e de ser afetado. Trata-se pois, de um corpo pensado não pelos seus órgãos e sistemas; tampouco como substância ou sujeito e sim pelo movimento de partículas que diferenciam movimento e repouso em termos de afetação. Por essa vertente a autora faz um rico rastreamento no pensamento deleuziano para refletir acerca do corpo trazendo questões fecundas para o âmbito da clínica psicanalítica. Ainda sobre o tema da memória, Diego Fricks Antonello, sob a orientação arguta de Jô Gondar, nos oferece um importante trabalho sobre a constituição do psiquismo em Freud, focalizando a formação dos processos da memória e depreendendo deles uma contribuição significativa para a teoria do trauma. Partindo da distinção salientada por Gondar acerca da memória representacional e não representacional, o artigo propõe uma revisão da Carta 52 de Freud à Fliess, e do texto " O bloco mágico" de Freud, sublinhando a existência de uma estratificação na memória, e evidenciando um trajeto entre a percepção, a memória inconsciente e a representação consciente. Isso é feito para diferenciar o primeiro impacto de um estímulo interno ou externo no sistema perceptivo, de um segundo momento em que a impressão dessas percepções, seus índices, suas marcas, são registradas como traços no inconsciente. Serão esses traços que ligados à representação de palavras, poderão ganhar acesso à consciência, segundo certas regras. Entretanto, essa primeira marca psíquica caso traga uma impressão traumática, pode funcionar como uma memória congelada, cuja excitação não avança para ser processada como traço e escoada pelas associações inconscientes, mas insiste de forma literal através de uma repetição compulsiva. Os autores avaliam os efeitos sociais desse mecanismo apoiando-se nos comentários de Benjamin acerca do volume de produções autobiográficas com narrativas literais sobre os eventos traumáticos do pós-guerra primeira guerra mundial, marcando um reencontro reiterado com o traumático. O próximo artigo é o de Nilda Martins Sirelli, intitulado “Ou não penso, ou não sou”, no qual a autora reconstitui o conceito de sujeito na perspectiva lacaniana, partindo da emergência da questão da subjetividade na obra de Descartes. Nessa interface entre filosofia e psicanálise, o texto prima por enfatizar que a dúvida valorizada por Descartes frutificará na abordagem psicanalítica do sujeito tomado como radicalmente dividido. A certeza cartesiana extraída do “Penso, logo sou”, é subvertida na citação lacaniana “ ou não penso, ou não sou”, que dá título ao artigo, de modo a deslocar a certeza que no sujeito cartesiano encontrava-se situado no Eu que pensa, para uma discussão sobre a verdade do inconsciente, onde ser e pensar encontram-se em disjunção. Assim, as consequências da máxima de Lacan “Penso onde não sou, logo sou onde não penso”, são depreendidas na averiguação de seus efeitos na dupla operação de alienação no Outro e separação do Outro relativas à fundação do sujeito para psicanálise. Trata-se de um texto rigoroso que contribui para elucidar essa complexa questão. Mantendo a linha de discussão sobre a constituição subjetiva o texto “Neurose e psicose: semelhanças e diferenças sob a perspectiva freudiana” de Michele Poletto propõe uma revisão da trajetória de Freud acerca desse tema, vindo a evidenciar que tanto na neurose como na psicose manifesta-se uma certa rebelião das tendências pulsionais frente ao ditames do mundo externo, que nunca se apresentam tal qual esperam nossos anseios, porém, as soluções produzidas pela defesa neurótica e aquela produzidas pela defesa psicótica são distintas. Enquanto na neurose o insatisfatório é substituído pela fantasia, ou pela regressão a momentos mais aprazíveis, na psicose há uma rejeição da realidade acompanhada de uma verdadeira reconstrução do mundo externo via a produção delirante e alucinatória, o que representa uma defesa bastante mais radical. O texto é bastante claro e segue uma linha de investigação que agradará bastante aos interessados nesse assunto. Os dois últimos artigos desse número se valerão da análise de filmes e de seus personagens. O primeiro de autoria de Tiago Alves de Moraes Sarmento e Alinne Nogueira Silva Coppus focaliza o personagem Batman tal como este é apresentado no filme Batman Begins, de 2005, supondo-o como um sujeito neurótico e acossado por um supereu rigoroso. Nos elementos marcantes que determinam a vida do personagem aparecem ainda o luto e elementos de estranhamento que os autores supõem que acabam por conduzi-lo à elaboração do signo Batman. O texto busca trazer uma contribuição que vale a pena ser conferida, para a reflexão acerca da razão do interesse do público pela figura dos super-heróis e lança algumas hipóteses sobre a identificação destes com o sujeito contemporâneo. O segundo artigo que se orienta pelo universo dos filmes aborda “Um Homem Sério(2009), dos irmãos Coen. Os autores Adriano Bier Fagundes e Analice de Lima Palombini assinalam que a peculiaridade do cinema dos irmãos Coen é pensar o problema do mal que no filme citado aparecer configurado na crise própria à cultura moderna. Eles entendem que “o filme oferece indícios para pensar “vida danificada” como sintoma da modernidade” e destacam o problema do pensamento abordado pela perspectiva da cultura judaica. O caráter ensaístico do texto que não o faz perder em rigor, lhe confere uma leveza bastante interessante para leitura. Dessa forma, finalizamos a apresentação desse novo número, desejando aos nossos leitores, um bom aproveitamento dos textos, além de um bom deleite. Por Denise Maurano Mello e Francisco Ramos de FariasDownloads
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2019-03-31
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EM REVISTA, P. e B. REVISTA COMPLETA. Ano 10. Número 02: Edição dezembro de 2012. Psicanálise & Barroco em Revista, [S. l.], v. 10, n. 2, 2019. DOI: 10.9789/1679-9887.2012.v10i2.%p. Disponível em: https://seer.unirio.br/psicanalise-barroco/article/view/8692. Acesso em: 5 nov. 2024.
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